Tese do governo para prorrogar desoneração contraria TCU, e corte cobra explicações
A corte de contas agora quer explicações do governo, que tem até 31 de janeiro para demonstrar ao tribunal
O argumento usado pelo governo Jair Bolsonaro (PL) para prorrogar a desoneração da folha de 17 setores sem adotar medidas tributárias para compensar a perda de arrecadação de R$ 9,1 bilhões em 2022 contraria uma decisão já emitida pelo TCU (Tribunal de Contas da União).
A corte de contas agora quer explicações do governo, que tem até 31 de janeiro para demonstrar ao tribunal ter adotado todas as providências exigidas pela LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal).
A prorrogação da desoneração da folha foi sancionada por Bolsonaro nas últimas horas de 31 de dezembro de 2021.
Como a renúncia de receitas não está prevista no Orçamento de 2022, o governo quer emplacar a tese de que a sanção ainda em 2021 significa uma prorrogação de política já existente, dispensando nova compensação.
A ala entusiasta do argumento afirma que o texto da LRF cita a exigência de medidas apenas em casos de concessão ou ampliação de benefícios tributários, sem mencionar a palavra prorrogação.
No entanto, o TCU já esclareceu esse ponto em um julgamento de 2010.
No acórdão, a corte determinou ao então Ministério da Fazenda –hoje Economia– que “observe, quando da prorrogação de renúncias de receitas, as condições estabelecidas no art. 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal”.
As condições são a adoção de medida de compensação ou a previsão das renúncias na Lei Orçamentária Anual. No caso da desoneração da folha, nenhuma das alternativas foi adotada.
A Secretaria-Geral da Presidência da República chegou a divulgar nota oficial no sábado (1º) afirmando que a compensação não seria necessária porque “se trata de prorrogação de benefício fiscal já existente” e porque a medida “foi considerada no Relatório de Estimativa de Receita do Projeto de Lei Orçamentária de 2022”.
O órgão disse ainda que a medida se dava “nos termos da orientação emitida pelo Tribunal de Contas da União”.
Como mostrou o jornal Folha de S.Paulo, não só o TCU cobra a compensação em casos de prorrogação, mas também o relator de receitas do Orçamento de 2022, senador Oriovisto Guimarães (Podemos-PR), disse que a nota do governo “está errada”.
Segundo ele, a renúncia com a desoneração não foi incluída no parecer de receitas do Orçamento porque Bolsonaro não sancionou a lei a tempo de seu impacto ser incorporado. “Não podemos estimar a receita com base em ‘eu acho'”, afirmou.
A Semag (Secretaria de Macroavaliação Governamental), do TCU, já havia solicitado ao Ministério da Economia, no início de dezembro, a comprovação do cumprimento da LRF em todas as renúncias instituídas no ano de 2021.
O pedido foi feito em um processo de acompanhamento dos chamados gastos tributários.
Segundo fontes do tribunal ouvidas pela reportagem, como a desoneração foi sancionada em 31 de dezembro, a nova lei será alcançada pela exigência. O governo terá até 31 de janeiro para comprovar o atendimento às exigências da LRF.
O Ministério da Economia chegou a recomendar a manutenção da sobretaxa do IOF (Imposto sobre Operações Financeiras) sobre operações de crédito e da CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido) mais elevada sobre bancos.
A pasta, porém, foi ignorada pelo Palácio do Planalto, e ambas as cobranças expiraram no fim de 2021.
Outros benefícios chancelados pelo presidente na virada do ano também serão alvo da fiscalização do TCU.
De acordo com técnicos da área econômica, a cobrança extra do IOF e da CSLL serviria para compensar também a medida que prorrogou, até o fim de 2026, a isenção do IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) para taxistas, cooperativas de taxistas e pessoas com deficiência.
A lei ainda estendeu o alcance do benefício a pessoas com deficiência auditiva, antes não contempladas pela isenção.
Na nota divulgada pela Secretaria-Geral, o governo recorreu ao mesmo argumento para justificar a ausência de compensações. “Por se tratar de prorrogação de isenção fiscal já existente, não será necessária nova compensação”, disse o órgão.
No entanto, a própria Conof (Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira) da Câmara já havia apontado a ilegalidade da medida, em informativo assinado pelo consultor Eugênio Greggianin em 4 de novembro de 2021.
“Não foi demonstrada a metodologia de cálculo da renúncia. Não foi indicada a compensação da renúncia. Dispositivos infringidos: art. 14, LRF (exige metodologia de cálculo da estimativa da renúncia; e demonstração de que a renúncia foi considerada na lei orçamentária ou está acompanhada de medidas compensatórias)”, diz o texto.
Segundo fontes do TCU, além do acompanhamento já em curso, a corte pode abrir processos específicos para apurar o caso. O Ministério Público junto ao TCU também analisa o episódio e pode representar pela abertura de nova auditoria.
Já é certo que o tema será alvo de um tópico específico nas contas de governo de 2021, sob relatoria do ministro Aroldo Cedraz.
Durante as tratativas internas do governo para a sanção da desoneração da folha, a AGU (Advocacia-Geral da União) apontou a necessidade de veto integral da lei, ou sanção acompanhada das medidas indicadas pela Economia, segundo fontes ouvidas pela reportagem.
No entanto, prevaleceu o entendimento do Palácio do Planalto, de que a prorrogação de uma renúncia dispensaria o cumprimento dos requisitos.
Nenhuma das leis que concederam benefícios foi subscrita pelo ministro Paulo Guedes (Economia) ou seu substituto, como seria a praxe em matérias tributárias.
Sem as medidas de compensação, a avaliação na área econômica é que o presidente poderia ser acusado de cometer crime de responsabilidade, passível de impeachment. Por isso a decisão de sancionar as leis sem as medidas tributárias foi recebida com surpresa entre os técnicos.
O Ministério da Economia direcionou os questionamentos sobre a desoneração da folha ao Palácio do Planalto. A Secretaria de Comunicação da Presidência, por sua vez, repassou as perguntas à Secretaria-Geral da Presidência, que não respondeu até a publicação deste texto.
A desoneração resulta em renúncias tributárias para o governo porque permite às empresas dos setores beneficiados pagarem alíquotas de 1% a 4,5% sobre a receita bruta, em vez de 20% sobre a folha de salários.
A permissão foi criada há dez anos como forma de reduzir os custos sobre a contratação de mão de obra para alguns setores.
De lá para cá, a política passou por um processo de expansão e, mais recentemente, redução de seu alcance. Atualmente, 17 setores ainda são beneficiados.
Os setores alcançados pela medida são os de calçados, call center, comunicação, confecção e vestuário, construção civil, empresas de construção e obras de infraestrutura, couro, fabricação de veículos e carrocerias, máquinas e equipamentos, proteína animal, têxtil, tecnologia da informação, tecnologia de comunicação, projeto de circuitos integrados, transporte metroferroviário de passageiros, transporte rodoviário coletivo e transporte rodoviário de cargas.
Por Idiana Tomazelli