Pobres levam ‘goleada’ e Bolsonaro faz ‘pegadinha eleitoral’ com Auxílio Brasil, diz economista
Em 2022, o governo espera financiar o programa reduzindo a fatura de precatórios
Para o especialista em desigualdade e pobreza Marcelo Neri, diretor do FGV Social, o governo Bolsonaro está preparando uma “pegadinha” com o novo programa social para ampliar e substituir o Bolsa Família -o Auxílio Brasil.
“Se não for sustentável em 2023, o programa não será nem social nem econômico. Será eleitoral”, afirma.
Há algumas semanas, o governo aumentou a alíquota do IOF (Imposto sobre Operações Financeiras) até 31 de dezembro para obter parte do dinheiro a fim de elevar o valor e o número de famílias beneficiadas. Elas passariam de 14,6 milhões para 17 milhões, com o benefício médio subindo dos R$ 190 atuais para R$ 300 mensais.
Em 2022, o governo espera financiar o programa reduzindo a fatura de precatórios (dívidas judiciais) que teria de desembolsar. Para 2023, no entanto, não há previsão da origem dos recursos.
Para Neri, a agenda social e econômica de Bolsonaro tornou-se uma espécie de “nem-nem”. “Nem social, nem econômica”, afirma.
O economista diz que os pobres têm levado uma “goleada” nos últimos anos. “Um dos problemas do Brasil é que o pobre tende a ser sempre o primeiro da fila do ajuste fiscal”, diz.
Pergunta – A pobreza extrema caía no Brasil desde o início dos anos 1990. Cedeu de quase 35% da população para cerca de 10% há cinco anos. Veio a crise fiscal de 2014 e a grande recessão de 2015-2016. Depois, a pandemia. Há hoje 13% de miseráveis (renda domiciliar per capita abaixo de R$ 261). O país conquistou avanços na educação, sobretudo dos mais pobres, mas o crescimento não se sustentou. Como avalia esse percurso?
Marcelo Neri – É verdade que tivemos um desempenho positivo no longo prazo. Mas é preciso levar em conta que a pobreza começou a aumentar em 2014. Mesmo depois da crise [2015-2016], quando passamos a ter uma lenta recuperação do PIB, a pobreza persistiu.
Talvez o próprio aumento da pobreza ajude a explicar o mau desempenho econômico. Além da grande recessão, tivemos uma diminuição do valor do Bolsa Família [sem reajuste desde 2018].
Nos anos 1980, a educação média no Brasil era de três anos de estudo por adulto, o que não era muito diferente de 1965. Mais recentemente, a educação aumentou, mas a renda e a produtividade, não. O que é outro dos paradoxos brasileiros.
Talvez a gente tenha feito uma educação muito pouco voltada para o mercado de trabalho e para a produtividade.
Uma educação que talvez tenha sido mais “cidadã”, mais básica, no sentido de aumentar a expectativa de vida e tornar o Brasil um país mais normal, por assim dizer. Mas [foi uma educação] de não oferecer uma boa colocação no mercado de trabalho e de beneficiar a economia.
A educação avançou, mas nossa agenda de produtividade não fez o mesmo caminho. Embora a expectativa de vida tenha aumentado, demoramos muito para fazer uma reforma da Previdência, por exemplo.
Desde a Constituição de 1988, tivemos avanços sociais grandes, mas não enfrentamos uma agenda econômica que mudasse a produtividade.
O Brasil tem sido um país que ou escolhe uma agenda econômica pura, como foi na época do milagre econômico [1967 a 1973, durante a ditadura militar], ou social pura, como após a redemocratização [1985]. Fizemos avanços sociais, sem uma agenda econômica muito consistente.
Na grande recessão de 2015-2016 chega a conta e a gente vê que, sem o lado econômico, o social não consegue manter a tendência de queda da pobreza, que até durou bastante.
Sobre o país não ter preparado as pessoas para o mercado de trabalho, tivemos uma profusão de cursos, como o Pronatec, e aumento considerável de vagas em escolas técnicas e faculdades federais. Isso tudo foi mal desenhado?
MN – Sempre tivemos pouca oferta de ensino técnico no Brasil, e os dados mostram que sua prevalência sempre foi menor do que em países comparáveis.
Mas, de acordo com as avaliações existentes, o Pronatec acabou desperdiçando recursos e não foi transformador. A não ser em alguns programas voltados à demanda [como o Pronatec-MDIC, que mapeou a demanda por trabalhadores antes de treiná-los]. Mas a quantidade dessa modalidade foi muito pequena.
Esse é mais um capítulo do que eu dizia. Fizemos talvez o Pronatec mais por razões sociais do que econômicas, do tudo pelo social. Porque a pessoa deveria ter direito a um curso, e não necessariamente para que ela arrumasse um emprego.
Até tivemos por um tempo a tentativa de uma espécie de caminho do meio entre a opção social e econômica, a partir de 2003, com redução da pobreza e da desigualdade com mais crescimento. Mas ela não se sustentou, como ficou claro depois, a partir de 2014.
Hoje, a situação é crítica. Há aumento da pobreza e, ao mesmo tempo, mais insegurança alimentar e fome, que atinge a população pela combinação de alto desemprego e inflação. O governo tenta encontrar recursos para um novo programa, mas há instabilidade a cada sinalização de mais gastos. Como sair do impasse?
MN – A agenda virou uma espécie de “nem-nem”. Ou seja, nem social, nem econômica. Quando se busca formas heterodoxas de financiar um novo programa, sinaliza-se mal para o mercado.
Mas esses programas são baratos. O Bolsa Família custa menos de 0,5% do PIB [R$ 35 bilhões ao ano]. Mesmo sendo transformado em um programa mais encorpado, num Auxílio Brasil, não chegaria a 1% do PIB. A Previdência custa 14% [do PIB].
Com R$ 43 bilhões, além do que já gastamos Bolsa Família, conseguiríamos levar todo mundo para acima de uma linha de pobreza de um salário mínimo por família.
Não tenho muita dúvida de que alguma coisa será feita em 2022. Mas o que vai acontecer depois? Pode estar vindo aí uma pegadinha. Se não for sustentável em 2023, o programa não será nem social nem econômico. Será eleitoral.
No fundo, não temos uma solução para o social apontada. Podemos acabar gerando instabilidade e, depois, não conseguimos resolver a fonte de financiamento. Não pagar precatórios para isso não é boa ideia. Pois é um problema que vai voltar logo mais, diretamente para o colo de quem estiver no governo em 2023. Isso acaba levando a um situação danosa para os dois lados, social e econômico.
Talvez a gente tenha saído de uma época em que antes era só o social ou só econômico para um imbróglio, no qual é preciso sinalizar uma coisa para o mercado e outra para a população. E essas coisas acabam não sendo consistentes entre si. Não resolvem nem uma coisa nem a outra.
Você diz que não seria tão complicado obter financiamento permanente para o social. O governo deixa de arrecadar, por exemplo, mais de R$ 300 bilhões ao ano em benefícios tributários a empresas. Seria viável tirar algo daí e ajudar o crescimento com o efeito multiplicador local de programas de renda?
MN – Politicamente, tirar recursos daí tem se mostrado difícil. Mas, se temos um problema orçamentário e outro de pobreza, é preciso ser mais eficiente. Ao gastar dinheiro com os mais pobres, de fato é possível ganhar eficiência, tanto na restrição fiscal quanto ao não penalizar a economia, favorecendo os mais pobres com esse efeito multiplicador.
Mas nunca conseguimos chegar nessa etapa do debate, e ficamos nessa espécie de arrebentação. Fontes de financiamento não faltam no Brasil, pois não arrecadamos ou gastamos pouco. Arrecadamos e gastamos mal. A única vantagem de termos todos esses problemas é que temos muito espaço para melhorar.
No caso dos subsídios tributários, não estaríamos tirando dos pobres para dar aos paupérrimos. Um dos problemas do Brasil é que o pobre tende a ser sempre o primeiro da fila do ajuste fiscal. No sentido de que eles não têm nenhuma proteção quando a coisa aperta. No Bolsa Família, além da fila de possíveis novos beneficiários [estimada em mais de 1,2 milhão], temos vários anos sem qualquer reajuste nos benefícios, desde 2018.
Mesmo um novo programa, com o nível de inflação atual, talvez sequer recupere as perdas acumuladas. A verdade é que, nos últimos anos, os pobres estão levando uma goleada.
Temos nesse momento um refluxo importante na pandemia, com o aumento da vacinação, e o grande setor de serviços, que representa 70% do PIB, voltando. Podemos esperar um aumento importante no emprego informal? Isso alivia a situação dos mais pobres?
MN – Pode ser. Mas, no fundo, estamos falando o tempo todo de cobertor curto. Temos de combater a pobreza e temos de fazer o ajuste fiscal. E entramos em uma situação, do ponto de vista macroeconômico, em que esse cobertor encurtou ainda mais. Temos uma situação de estagflação [estagnação do crescimento com inflação], com os choques ainda muitos fortes, como na energia.
Mas, com esse nível de inflação, antes de melhorar, o desemprego talvez ainda tenha que piorar [para esfriar a economia e conter os preços]. E o que os dados mostram é que essa estagflação, que é um fenômeno de curto prazo, está muito mais séria entre os pobres.
A inflação dos pobres tem estado três pontos acima daquela das classes de renda mais alta; e o desemprego dos pobres também aumentou muito mais do que o das classes mais altas.
Não temos aquela solução clássica de curto prazo: “Pau na máquina e vamos ter um pouco mais de inflação para reduzir o desemprego”. Estamos perdendo nas duas pontas; e os pobres, mais ainda.
E se a estagflação ocorre em um momento de eleição, quando se decidem algumas políticas que têm consequências de prazo maior, talvez essa tempestade perfeita não seja apenas transitória. Além do que, eleição com estagflação talvez seja a receita para propostas populistas.
Elas, no fundo, vão afastar o problema meio que por imaginação, com o seu agravamento depois. O grande risco é termos um programa voltado para 2022, não para o período à frente.
RAIO-X
Marcelo Neri
Doutor em economia pela Universidade de Princeton, é diretor do FGV Social e professor da EPGE/FGV. Foi presidente do Ipea, ministro de Assuntos Estratégicos e secretário-executivo do CDES (Conselhão). Avaliou políticas públicas em duas dezenas de países e implementou programas em três níveis de governo no Brasil. Publicou 12 livros.