Paulo Coelho se oferece para cobrir gastos de festival reprovado pela Funarte

A única exigência do escritor é que o evento "seja antifascista e pela democracia"

Na madrugada desta quarta-feira (14/7), o escritor Paulo Coelho publicou no Twitter uma foto ao lado da esposa, a artista plástica Christina Oiticica, e colocou na legenda uma oferta para bancar a realização do Festival de Jazz do Capão.

No post, Paulo Coelho fez apenas a exigência de que o evento “seja antifascista e pela democracia”. O escritor e a mulher têm, juntos, uma fundação.

O Festival de Jazz do Capão acontece há dez anos na Bahia e teve o pedido para captar verba pela Lei Rouanet (R$ 145 mil) reprovado pela Fundação Nacional de Artes (Funarte).

Ao tomar a decisão, a Funarte citou Deus e também o fato de que o festival havia se posicionado como “antifascista e pela democracia”.

Entenda o caso

Um festival de jazz na Bahia foi impedido de captar recursos via Lei Rouanet pela gestão Mario Frias, que comanda a Cultura no governo Bolsonaro. O processo foi analisado dentro do âmbito da Fundação Nacional das Artes, a Funarte, num documento carregado de referências religiosas.

O parecer desfavorável ao Festival de Jazz do Capão, que está em sua nona edição, começa com a frase “o objetivo e finalidade maior de toda música não deveria ser nenhum outro além da glória de Deus e a renovação da alma”, atribuída a Johann Sebastian Bach.

No Facebook, o Festival de Jazz do Capão, na Chapada Diamantina, postou em 1º de junho uma imagem se declarando “antifascista e pela democracia”.

A postagem é apontada pelo documento como uma das motivações do parecer ter sido negativo.

“Localizamos uma postagem do dia 1º de junho de 2020, com uma imagem, contendo um ‘slogan’ para ‘divulgação’, com a denominação de Festival Jazz do Capão, na plataforma Facebook, a qual complementou os fundamentos para emissão deste parecer técnico”, afirma o parecer.

Na seção “Sobre a aplicabilidade da lei federal de incentivo à cultura em objeto artístico cultural” do parecer, a primeira frase é “por inspiração do canto gregoriano, a música pode ser vista como uma arte divina, onde as vozes em união se direcionam à Deus [sic]”.

O parecer é ainda recheado com citações, versos em latim e frases como “A Arte é tão singular que pode ser associada ao Criador”.
A conclusão é que o projeto traria “desvio de objeto, risco à malversação do recurso público incentivado com propositura de indevido uso do mesmo”.

“Enquanto eu for Secretário Especial da Cultura ela será resgatada desse sequestro político/ideológico!”, afirmou Mario Frias nas redes sociais.

Segundo Tiago Tao, produtor-executivo do Jazz no Capão, o festival já havia sido aprovado na Rouanet outras vezes, as mais recentes de 2017 a 2019. “Geralmente o parecer tem um teor bem técnico”, afirma Tao, sobre a diferença entre os documentos em anos anteriores e o conteúdo do parecer de 2021, que tem versos de Beethoven, diálogo entre Platão e Glauco, além de menções ao “Criador”.

O parecer é assinado por Ronaldo Gomes, assessor técnico da presidência da Funarte. Uma semana depois, Gomes foi exonerado do cargo.

O documento também é assinado por Marcelo Nery Costa, diretor-geral da Funarte, nomeado em maio pelo general Luiz Eduardo Ramos.

Nery ocupava um cargo de assessoria no Escritório de Governança do Legado Olímpico, estrutura criada para ser responsável pela gestão de instalações construídas para os Jogos Olímpicos e Paralímpicos de 2016.

A reportagem entrou em contato com a Funarte, questionando o uso de justificativas de teor religioso num parecer técnico, mas não obteve resposta até a publicação desta nota.

A gestão do ex-“Malhação” foi responsável recentemente por um expurgo de livros entendidos pelo governo como problemáticos da Fundação Cultural Palmares -parte do material foi dividido em grupos como “iconografia delinquencial”, “sexualização de crianças” e “livros de e sobre Karl Marx”.

Frias e seu secretário de Fomento, André Porciuncula, participaram de lives direcionadas a artistas cristãos, dando dicas sobre Lei Rouanet. Tanto o mecanismo de fomento quanto a Agência Nacional do Cinema têm andado em marcha lenta nos últimos tempos, o que é atribuído pelo governo a prestações de contas atrasadas.

Quando uma live de temática LGBT foi cancelada na véspera pela prefeitura de Itajaí, em Santa Catarina, Frias comemorou.

O secretário Porciuncula se posicionou no Twitter. “Quer brincar de fazer evento político/ideológico? Então faça com dinheiro privado. A cultura não ficará mais refém de palanque político/partidário, ela será devolvida ao homem comum. A lei é muito clara, dinheiro para cultura não pode financiar nada além das ações culturais”, escreveu.

A gestão de Mario Frias tem sido criticada pela morosidade na Lei Rouanet e na Ancine. Hoje, quem pleiteia dinheiro público para a produção de uma peça de teatro, um show ou uma exposição depende da aprovação quase que exclusiva de Porciuncula, ex-policial militar sem experiência na cultura e alinhado ao presidente Jair Bolsonaro.

O governo federal não publicou o edital de chamamento para a seleção dos novos membros da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura, a Cnic, comissão da sociedade civil responsável por analisar os projetos que buscam recursos via Lei de Incentivo à Cultura, a Rouanet.

Instituída com a Rouanet, há 30 anos, a Cnic é um dos principais mecanismos para garantir a transparência da maior lei de fomento às artes do país, que distribuiu R$ 1,4 bilhão no ano passado. A comissão funciona como uma consultoria especializada oferecida de graça para o governo, já que os conselheiros, membros da sociedade civil com décadas de atuação em suas áreas da cultura, não são remunerados.

 

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