MP das fake news de Bolsonaro, derrubada por Senado e STF, trouxe perigos e lança desafios
Medida reacendeu o debate em torno da moderação de conteúdo por plataformas digitais
A dupla derrota para o presidente Jair Bolsonaro com o sepultamento pelo Senado e pelo STF da medida provisória das fake news nesta terça-feira (14/9) reacendeu o debate em torno da moderação de conteúdo por plataformas digitais.
Entretanto o debate em torno do tema revelou-se, de forma clara, centrado numa polaridade discursiva sobre o assunto.
Por um lado, os objetivos abjetos do presidente em buscar colocar embaixo de suas próprias asas o fluxo comunicacional da sociedade e, por outro, uma (quase) cega defesa da administração puramente privada e intransparente da liberdade de expressão da população com uma capilaridade quase que impenetrável.
O assunto não é simples, não obstante não incapaz de reflexão. O cenário nacional entretanto é mais peculiar quando comparado com o ambiente de discussão global.
No âmbito global, importantes atores tem se distanciado e procurado reformular as principais regulações que fundaram o primeiro momento da internet nos anos 90 e 2000.
Atualmente está em debate no congresso americano a reforma da principal legislação da internet americana, que criou uma responsabilidade por imunidade para provedores.
Na Europa, a diretiva do comercio eletrônico de 2000 está sendo reformulada com o debate em torno da diretiva “Digital Services Act” e “Digital Markets Act”.
E a Alemanha deu passos concretos no combate a ilícitos digitais (NetzDG) e também com a incorporação dos serviços digitais no novo marco regulatório para os meios de comunicação de massa (Medienstaatsvertrag) influenciando todo debate europeu. E o Brasil, onde se encontra?
Atualmente em discussão da Câmara dos Deputados, o PL 2630 é a chance do Brasil refletir sobre o novo ambiente digital em que vivemos, seus riscos e chances.
Essa reflexão entretanto se esbarra, diferentemente de outros países, num bloqueio discursivo imposto por uma quase sacralidade imputada ao Marco Civil da Internet de 2014.
Escrever leis para internet em pedra vai de encontro com a própria dinâmica digital, em que a proteção de direitos fundamentais dos indivíduos e coletivos exige uma constante obrigação de avaliação, correção e melhora tanto pelo legislador quanto por tribunais superiores.
A MP 1.068/21, por sua vez, é a antípoda dessa anacrônica sacralidade, posto que visa, por um lado, estabelecer o executivo como guardião do fluxo comunicacional da sociedade e, por outro, dificultar a moderação de conteúdo privada de questões ligadas à desinformação.
Como estão escapar desse binarismo?
Primeiramente é necessário se perguntar o que legitima uma onda global de reformulação das legislações da internet.
A chave para essa resposta encontra-se em dois pontos fundamentais: um primeiro ligado às transformações fáticas do ambiente digital nas últimas duas décadas e o segundo ponto fundamental decorrente da própria semântica constitucional dos estados democráticos modernos.
O momento da internet atual difere-se do primeiro momento, no qual as primeiras legislações foram erigidas visando fomentar unicamente a inovação em campo novo e incerto.
Já o ambiente digital atual é muito mais marcado pela forte concentração em poucas aplicações, movimento esse chamado de plataformização da internet.
Até mesmo o inventor da World Wide Web, Tim Berners-Lee, tem clamado por iniciativas, as quais, em suas próprias palavras, devem restaurar “os valores de empoderamento individual e de grupos que a Internet costumava ter e parece ter perdido”.
Justamente essa transformação fática turvou o objeto das primeiras legislações sobre a internet exigindo uma atualização para melhor proteção de instituições e direitos individuais. E aqui entra o segundo ponto fundamental que legitima a onda global de reformulação.
Para o tema concreto da moderação de conteúdo, por exemplo, em estados democráticos, o regime jurídico em torno da comunicação, sempre encontrou um tratamento distinto para suas distintas formas: a comunicação privada sempre foi revestida de uma maior proteção pelo sigilo e privacidade enquanto que a pública ou coletiva sempre seguiu um regime diferenciado dado o impacto na formação da opinião pública e democracia.
Aqui vê-se a ligação entre as recentes transformações fáticas e o direito.
Com poucas aplicações de internet como verdadeiras infraestruturas da comunicação cotidiana da população, o direito deve assumir um papel não somente de fomentador ilimitado da autonomia privada, mas também de protetor de direitos individuais e coletivos nesse novo cenário.
Nesse ponto, há que se diferenciar entre a liberdade de expressão do indivíduo e um plano estrutural que administra, monetiza e gere a liberdade de expressão em larga escala desses indivíduos.
Aqui deve-se questionar quais as obrigações e deveres devem ser criados para esse plano estrutural que administra a liberdade de expressão da população visto sua posição central como infraestrutura da comunicação tendo influencia direta na limitação de direitos e garantias individuais e na democracia.
Nesse contexto, o PL 2630 tem justamente dois desafios na moderação de conteúdo: um no plano estrutural e outro no plano individual.
No estrutural precisa oferecer uma resposta legal e adequada para a questão da criação de uma “economia da desinformação e de ataques institucionais”, enfrentado pelo STF no inquérito das fake news.
Aqui há que se mirar no plano estrutural (e não somente individual) pois caso contrário corre-se o risco similar ao da mitologia grega da Hidra de Lerna, no qual a cada cabeça cortada surgem várias outras no lugar.
Uma saída simples, eficaz e estrutural seria remeter toda forma de monetização (que ocorre por publicidade e impulsionamento) para o regime jurídico nacional de publicidade, que já regula o setor de forma eficaz há décadas visando assim o acumulo de experiencia para futuras avaliações, correções e regulações.
Já no plano individual, o grande desafio encontra-se na questão do acesso à justiça e implementação de deveres procedimentais.
Para fins de proteção do individuo, a primeira defesa do usuário deve ocorrer de forma simplificada e gratuita na própria plataforma, a qual deve fundamentar e oferecer um devido processo informacional aos usuários diante de remoção de conteúdo com relatórios constantes ao poder público.
Nesse contexto, o judiciário atuaria como um observador de segunda ordem, examinando se os padrões seguidos estão em conformidade com ditames públicos mas também podendo decidir a qualquer momento.
A MP 1.068/21 trouxe consigo o perigo do obscurantismo em torno da moderação de conteúdo, pois captura o debate para uma polarização discursiva de um modelo déspota-pessoal e um outro essencialmente orientado por interesses econômicos. O desafio é justamente romper essa polaridade.