Lira adota entendimento que pode dificultar cassação de parlamentares
Na votação do caso Flordelis, presidente da Câmara abriu caminho para que plenário possa abrandar punição
A decisão do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), de mudar o rito de votação do processo contra a ex-deputada federal Flordelis pelo plenário da Casa pode dificultar ainda mais a cassação do mandato de parlamentares no futuro.
A ex-deputada foi denunciada pelo Ministério Público do Rio de Janeiro em agosto de 2020 sob a acusação de ser a mandante do assassinato do marido, Anderson do Carmo.
Flordelis perdeu o mandato após votação expressiva pelo plenário da Câmara, 437 votos a 7. Dois dias após ser cassada, ela foi presa no Rio de Janeiro.
Até a cassação da ex-deputada, entendia-se que cabia ao plenário da Câmara apenas aprovar ou rejeitar as recomendações do Conselho de Ética. No caso de um parecer que sugerisse a perda do mandato, os deputados deveriam confirmar ou não o entendimento do relator.
Na votação do caso Flordelis, porém, Lira mudou o rito e decidiu aceitar que, se houvesse apoio suficiente, fossem apresentadas emendas para abrandar a pena aplicada à ex-parlamentar.
Com o apoio de 103 deputados, seria possível propor uma emenda recomendando a suspensão de Flordelis por seis meses, por exemplo. A emenda seria apreciada antes da cassação. Se tivesse maioria, a perda de mandato nem sequer seria analisada pelo plenário.
A mudança desagradou ao presidente do Conselho de Ética e Decoro Parlamentar, deputado Paulo Azi (DEM-BA), que expressou publicamente o descontentamento durante a sessão.
Na avaliação do parlamentar, a decisão de Lira teria “consequências severamente graves para o processo legislativo”, como a possibilidade de emendamento em plenário, “desvirtuando o processo instruído ao longo de todo o Conselho e esvaziando a análise e a decisão” do colegiado.
Ele também citou a possibilidade de nomeação de relator em plenário para dar parecer às emendas sem a necessidade de que seja membro do Conselho de Ética, podendo apresentar uma nova proposta de encaminhamento “sem sequer ter participado da instrução do processo.”
Em resposta, o presidente da Câmara defendeu a medida e afirmou que o plenário era soberano.
A cassação de Flordelis foi a 21ª realizada pelo plenário da Casa desde a redemocratização e a primeira desde 2016, quando o ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha (MDB) foi formalmente acusado na Câmara de mentir aos colegas ao negar, em março de 2015, ter “qualquer tipo de conta” no exterior –frase dita meses antes de vir à tona a existência de dinheiro atribuído ao emedebista na Suíça.
O próximo caso em que o novo entendimento pode ser testado envolve o deputado bolsonarista Daniel Silveira (PSL-RJ), que acumula três recomendações de punição pelo Conselho de Ética por processos diferentes. A principal, de suspensão do mandato parlamentar por seis meses, foi sugerida em uma representação contra o ex-PM por ter publicado um vídeo com ataques ao STF (Supremo Tribunal Federal) e por apologia da ditadura militar.
Há ainda uma suspensão de dois meses em uma representação aberta após Silveira ter gravado e divulgado uma reunião interna do PSL em 2019. E uma censura escrita recomendada após o bolsonarista ter ameaçado manifestantes durante um ato contra o governo Jair Bolsonaro em maio de 2020.
Lira ainda precisa analisar um recurso para decidir se as três penalidades serão apreciadas separadamente ou se será avaliada apenas uma delas –no caso, a suspensão de seis meses do mandato. Na segunda hipótese e conforme a decisão adotada no caso Flordelis, seria possível propor emendas para amenizar a penalidade contra o deputado, preso desde 24 de junho por ordem do ministro Alexandre de Moraes (STF).
Enquanto isso, a Mesa Diretora da Câmara ainda não encaminhou ao Conselho de Ética o processo contra o deputado Wilson Santiago (PTB-PB). Em fevereiro de 2020, os deputados derrubaram decisão do então ministro Celso de Mello, do Supremo, que havia afastado do mandato Santiago, acusado de desviar verbas de obras contra a seca no sertão da Paraíba.
À época, o argumento dos parlamentares era o de que uma decisão como a de Celso de Mello abriria um perigoso precedente. Segundo eles, não haveria impunidade já que as acusações contra Santiago seriam analisadas pelo Conselho de Ética da Câmara.
Mais de um ano e meio depois, o caso de Santiago está parado na estaca zero –na Mesa da Casa aguardando deliberação sobre arquivamento ou envio ao conselho.
Procurado, o presidente da Câmara disse por meio de sua assessoria ser importante destacar o trabalho do conselho, “instância que acolhe a denúncia, investiga, analisa e vota o parecer.”
“O que nós queremos fazer é permitir uma gradação, pois o plenário que pode mais também pode menos. Da forma que temos hoje, é tudo ou nada”, disse. “Então, se houver uma emenda com 103 assinaturas, podemos sim dar um posicionamento sem sermos radicais.
Não acredito que a Câmara faça qualquer mudança com o objetivo de dificultar cassações. Veja o caso da deputada Flordelis, que teve apenas 7 votos contra a sua cassação.”
Lira não respondeu a pergunta sobre a demora de um ano e meio no envio do caso de Wilson Santiago ao Conselho de Ética.
O esvaziamento do poder do Conselho de Ética se insere em um contexto em que Lira tem priorizado a decisão do plenário sobre a de colegiados da Casa, estruturados para debater projetos ou temas específicos.
No início de agosto, o presidente da Câmara desconsiderou decisão de comissão especial que rejeitou a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) do voto impresso e levou a proposição para voto diretamente no plenário. O texto recebeu 229 a favor, 218 contra e uma abstenção. Eram necessários ao menos 308 votos dos 513 deputados -60%- para que a proposta de impressão do voto dado pelo eleitor na urna eletrônica fosse adiante.
Além disso, adotou a prática de votar urgências de projetos que estão em comissões, para que sejam analisadas pelo conjunto de deputados, em vez de pelo colegiado.
Na avaliação do líder da Oposição, Alessandro Molon (PSB-RJ), ao se levar os temas mais importantes e polêmicos diretamente para o plenário, “atropela-se o processo legislativo, limita-se a resistência legítima a retrocessos e esvazia-se o poder das comissões -e dos membros das mesmas-, concentrando-se mais poder na presidência da Câmara.”
“Ou seja, é uma prática que, por várias razões, deveria ser evitada, mas tem sido cada vez mais frequente.”
A deputada Fernanda Melchionna (PSOL-RS) também lembra que a pandemia de Covid-19 foi usada como argumento para levar muitos projetos diretamente ao plenário.
“O presidente da Câmara está levando diretamente ao plenário matérias que são super complicadas e deveriam ter tramitação em comissões, em especial durante a pandemia, quando as pessoas estão preocupadas com vacina e emprego e não podem acompanhar cotidianamente o que está sendo votado pelos deputados”, afirmou.
Por Danielle Brant e Ranier Bragon