Governo Lula prioriza combate a golpismo em redes e deixa regulação ampla em 2º plano

Críticos a esse escopo mais restrito ressaltam que há risco de gastar muito capital político para aprovar um projeto específico

A proposta apresentada pelo ministro da Justiça, Flávio Dino (PSB), ao presidente Lula (PT) com obrigações às plataformas de redes sociais prioriza o combate a conteúdo golpista, mas deixa em segundo plano a regulação de outros temas, como fake news e desinformação sobre saúde.

Críticos a esse escopo mais restrito ressaltam que há risco de gastar muito capital político para aprovar um projeto específico, o que poderia dificultar uma segunda discussão sobre a regulação das plataformas -o tema vem sendo debatido de forma intensa nos últimos dois anos no Congresso.

Por outro lado, há quem defenda a iniciativa como um “balão de ensaio” para uma regulação geral de redes sociais.

Desde a campanha, Lula sinaliza que pretendia regular as mídias sociais. O assunto ganhou urgência com os ataques golpistas de 8 de janeiro.

A proposta foi apresentada por Dino a Lula em formato de medida provisória e faz parte de um pacote antigolpismo. Segundo o ministro, as propostas serão analisadas por Lula e outras áreas do governo antes do envio, em fevereiro, para o Congresso.

Como a Folha de S.Paulo mostrou, o texto determina que as plataformas terão o “dever de cuidado” de impedir a disseminação de conteúdo que peça a abolição do Estado democrático de Direito, encoraje a violência para deposição do governo e incite, publicamente, animosidade entre as Forças Armadas e os Poderes.

Em entrevista a jornalistas, Dino também citou terrorismo e afirmou que as regras não são consideradas pelo governo uma regulamentação sobre as big techs. “É algo focado exclusivamente em crimes voltados contra o Estado democrático de Direito e o terrorismo”, disse.

A redação traz ainda obrigação de relatórios de transparência sobre moderação de conteúdo, além de diminuir o prazo para o cumprimento de ordens judiciais sobre remoção e impor multas maiores.

Uma das propostas do grupo de trabalho de Comunicações da transição de governo era iniciar o debate sobre regulação das plataformas a partir de uma consulta pública nos primeiros cem dias de governo.

A avaliação do governo é que uma proposta específica dá uma resposta imediata aos ataques de 8 de janeiro.

Durante o mandato de Jair Bolsonaro (PL), o debate sobre o tema se concentrou no PL 2630, o projeto das fake news, e foi apresentado como resposta à desinformação sobre a pandemia.

Aprovado no Senado, ele não avançou na Câmara após forte resistência das plataformas e dos governistas.

O PL 2630 é longo e obriga as empresas a divulgarem relatórios de transparência sobre moderação de conteúdo e sobre publicidade. Elas também teriam que notificar os usuários de medidas tomadas contra os perfis e oferecer canal para recurso.

O deputado federal Orlando Silva (PC do B-SP), relator do projeto na Câmara, afirmou que ainda não teve acesso à íntegra da proposta, mas que considera negativa a ideia de focar apenas obrigações relativas à defesa do Estado de Direito. Para ele, é preciso aprovar algo mais amplo.

“O problema da desinformação envolve temas de saúde pública e precisa ser cuidado com muita atenção. Não é apenas conteúdo político”, diz.

Segundo ele, deve se olhar para o Brasil para além de 8 de janeiro. “Para preservar a democracia brasileira, as políticas públicas, garantir o acesso à informação, produzir uma vida saudável no país, a regulação das plataformas é um desafio. Você não fará isso com uma abordagem tópica do problema.”

Para o deputado federal eleito Duarte Júnior (PSB-MA), aliado de Dino e que acompanhou parte da discussão sobre o pacote, um plano ideal de regulação avançaria em diferentes questões, como saúde pública e relações de consumo. Mas ele defende rapidez na aprovação dessa proposta e considera que o PL das fake news criou muitas obrigações para as plataformas.

“A gente tem que estabelecer regras que de fato façam sentido, não um número exagerado de regramentos nos quais as plataformas vão ter que se adequar, mas que não terão sentido social algum.”

A visão no Ministério da Justiça é que houve uma ausência generalizada de moderação das plataformas em conteúdos explicitamente ilegais nos dias anteriores aos ataques, como convocações à invasão e depredação das sedes dos três Poderes.

Para Carlos Affonso Souza, professor da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e diretor do ITS-Rio (Instituto de Tecnologia e Sociedade), tratar moderação de conteúdos antidemocráticos pode servir de balão de ensaio para um regramento mais abrangente.

“Mas é importante ter clareza sobre quais serão as regras que irão atender ao chamado dever de cuidado, evitando que ele gere ainda mais subjetividades”, diz.

Ele afirma que as plataformas poderiam ter feito mais nos últimos anos para promover moderação de conteúdo de modo mais “transparente, informativo e coerente”. Também aponta para riscos como estímulos para remoção de discursos legítimos.

“O mercado pode sair ganhando com algumas diretrizes sobre moderação de conteúdo, mas quanto mais detalhista for essa legislação maior o risco de ela ser desequilibrada, a começar pelos padrões que definem o que é um discurso antidemocrático”, avalia.

Apesar de entender a urgência que é dada ao tema, Raquel Saraiva, advogada e presidente do Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife, diz que há risco de que outros temas sejam esquecidos com a apresentação de uma proposta mais restrita.

“A gente precisa fazer essa discussão sobre uma regulação ampla das plataformas. O receio é que esse projeto capture essa discussão”, diz. “Conduzir um processo legislativo dessa natureza já é muito complicado, aí ter de fazer isso duas vezes… Eu realmente acho que o debate vai perder força.”

Especialistas também defendem que a comunidade acadêmica e científica seja envolvida no debate antes de o projeto ser apresentado ao Congresso.

Por Renata Galf e Paula Soprana

Sair da versão mobile