Governo Bolsonaro pagou R$ 75 mi a empresas ligadas a aeronaves suspeitas de garimpo em terra indígena
Governo federal pagou R$ 124 milhões a empresas que fazem uso de helicópteros suspeitos
O governo federal pagou R$ 124 milhões a empresas que fazem uso de helicópteros suspeitos de garantir a logística em garimpos ilegais em terra indígena na Amazônia. Desse valor, R$ 75 milhões (60,5%) foram pagos nos dois anos e nove meses do governo Jair Bolsonaro.
Uma operação da Anac (Agência Nacional de Aviação Civil), com a participação da Polícia Federal, suporte do Ibama e coordenação do Ministério da Justiça e Segurança Pública, apreendeu ou interditou em Roraima 66 aeronaves suspeitas de atuação em mineração na terra yanomâmi, a maior do Brasil.
A reportagem obteve os documentos da apreensão de nove helicópteros, feita em 26 de agosto. Os detalhes dessas apreensões e o cruzamento feito pela reportagem com dados dos registros de aeronaves e com pagamentos feitos pelo governo federal mostram um suposto jogo duplo de pessoas associadas a empresas de transporte aéreo.
A ação da Anac ocorreu nas dependências da Cataratas Poços Artesianos, em Boa Vista. Um dos sócios da Cataratas, Rodrigo Martins de Mello, é também um dos donos da Icaraí Turismo Táxi Aéreo. No momento da inspeção, agentes da Anac e da PF encontraram um piloto e um sócio da Emar Táxi Aéreo. Parte dos helicópteros irregulares é operada pela Tarp Táxi Aéreo.
As quatro empresas recebem ou receberam recursos públicos federais. A fatia mais expressiva dos pagamentos é do Ministério da Saúde, para fins de saúde indígena.
Aeronaves e pilotos suspeitos de abastecer áreas de garimpo são ligados a empresas que recebem dinheiro público para transportar equipes de saúde e indígenas, inclusive os yanomâmi de Roraima.
Os pagamentos ocorrem desde 2014, com intensificação a partir de 2016 e na gestão Bolsonaro. A saúde indígena concentra quase todos os pagamentos.
O valor total, R$ 124 milhões, está registrado no Portal da Transparência do governo federal. Uma pequena parte foi destinada às empresas por Codevasf – Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (R$ 506 mil), Exército (R$ 6,5 mil) Anac (R$ 4 mil) e Embrapa (R$ 3,6 mil).
A Secretaria Especial de Saúde Indígena utiliza as vias terrestre, fluvial e aérea para transportar equipes de assistência aos territórios indígenas, segundo o Ministério da Saúde.
“Os DSEIs [distritos sanitários especiais indígenas] celebram contratos com diversas empresas para atendimento de suas necessidades logísticas, conforme preconizado em lei”, disse o ministério, em nota.
A Codevasf fez licitação para fretamento de aeronave e contratou o menor preço, com o serviço sendo executado regularmente, afirmou. O Exército não respondeu. Os pagamentos da Anac são restituições de taxa, segundo a agência. A Embrapa Roraima contratou a empresa Cataratas para manutenção de poço artesiano. “O serviço foi adequadamente prestado”, disse, em nota.
A operação nas dependências da Cataratas Poços Artesianos resultou numa prisão em flagrante, no indiciamento pela PF do homem preso e no indiciamento de um dos donos, Rodrigo Mello, que apareceu no local após ser contatado pelas autoridades.
O Ibama foi acionado diante da presença de grande quantidade de material associado a crimes ambientais, principalmente galões com combustível –os chamados carotes, no universo do garimpo ilegal.
Havia ainda motores, maquinários usados em garimpo, mangueiras de grosso calibre, bateias e quadriciclos. E uma quantidade de minério, que ainda passará por perícia.
Os fiscais da Anac encontraram irregularidades nas nove aeronaves apreendidas. A alteração mais marcante é a retirada de bancos traseiros e a substituição por estruturas de metal ou compensado. Isso viabiliza o “transporte de combustível e de maquinário para as áreas de garimpo”, conforme os registros da operação.
Equipamentos apreendidos indicam pontos de passagem próximos à Floresta Nacional, “local que é utilizado como ponto de apoio ao garimpo ilegal na terra indígena yanomâmi”, conforme consta nos documentos.
“Todas as aeronaves estavam descaracterizadas, com bancos traseiros retirados. Carotes de 50 litros seriam levados para garimpos em território yanomâmi”, disse à reportagem o delegado Celso Paiva, da PF em Roraima, responsável pelo inquérito aberto.
Mello, dono da Cataratas, é alvo de outras investigações da PF sobre garimpo ilegal na terra yanomâmi. Ele é suspeito de atuar na garantia da logística em pontos abertos na Amazônia.
Entre 2014 e 2018, a Cataratas recebeu R$ 8,6 milhões do governo federal. Depois, a Icaraí assumiu o protagonismo nos repasses: R$ 30,6 milhões entre 2018 e 2021.
À reportagem, em nota assinada pelo advogado Cláudio Dalledone, Mello afirmou que todos os contratos de suas empresas foram cumpridos integralmente “à luz dos órgãos de fiscalização”. Não houve irregularidade nem nas licitações nem na execução, segundo a defesa.
Aeronaves com certificados vencidos não estavam voando, mas em solo, diz a nota. Um dos helicópteros foi arrendado a Mello para tentativa de resgate de vítimas de um acidente aéreo na terra yanomâmi, em área de garimpo ilegal, afirmou o advogado.
Mello não tem envolvimento com garimpo ilegal e há 20 anos atua com engenharia, táxi aéreo e mineração, de forma legal, com as devidas autorizações e licenças, disse. “Os objetos encontrados na sede da empresa nada tem a ver com ações ilegais de garimpo.”
Uma denúncia de abuso de autoridade foi feita contra agentes da Força Nacional de Segurança e do Ibama, protocolada no Ministério do Meio Ambiente, em Brasília, conforme o advogado.
Quando os fiscais da Anac estiveram no espaço da Cataratas, um piloto e um sócio da Emar Táxi Aéreo testavam um helicóptero. Eles foram ouvidos pela PF e disseram que fariam um resgate à margem do rio Uraricoera, que corta a terra yanomâmi.
O piloto afirmou ainda que um dos helicópteros apreendidos havia sido arrendado pela Emar, por cinco anos, até 2020. Ele e o sócio foram ouvidos como testemunhas. A PF segue investigando a participação dos dois no episódio. Eles são investigados ainda pela Anac, segundo a própria empresa.
A Emar recebeu até agora R$ 55 milhões para transporte voltado à saúde indígena. “Não temos qualquer envolvimento com a empresa que sofreu a apreensão. Os pilotos da Emar não têm dever de exclusividade. No dia da ocorrência, estavam de férias e no local sem o conhecimento e a anuência da empresa”, afirmou Antônio Romeiro, diretor-geral da Emar, por escrito.
“A Emar é uma empresa idônea, há mais de 18 anos no mercado de aviação sem a ocorrência de nenhum acidente, que preza pela legalidade dos atos e nunca participou ou nem sequer foi investigada por qualquer ato ilegal”, disse Romeiro.
Sobre os recursos recebidos do governo federal, o diretor afirmou que os serviços vêm sendo prestados desde o êxito em licitação da Secretaria Especial de Saúde Indígena em 2018.
“Não há registros de outras irregularidades envolvendo ilícito em nome da Emar na Anac”, afirmou a agência.
Dos nove helicópteros apreendidos, dois eram operados pela Tarp Táxi Aéreo e um era de propriedade dessa empresa, segundo os registros da Anac. A reportagem não conseguiu contato com a companhia nos números de telefone informados nem houve resposta ao email enviado.
Por Vinicius Sassine