Governo Bolsonaro deixa parados R$ 2,3 bi destinados à vacina contra Covid
Valor é resultado do cancelamento dos contratos para compra da Sputnik e da Covaxin; recurso está no Tesouro, diz Saúde
O governo Jair Bolsonaro avançou na rescisão de um segundo contrato para compra de vacinas contra a Covid-19 e deixou parado, sem uso na aquisição de outros imunizantes, um montante de R$ 2,3 bilhões.
O Ministério da Saúde afirmou à Folha que apresentou à União Química Farmacêutica, responsável pela vacina russa Sputnik V, a intenção de rescindir o contrato de R$ 693,6 milhões, destinado à compra de 10 milhões de doses.
O cancelamento da Sputnik V se somará à anulação do contrato e da reserva de R$ 1,6 bilhão destinado ao pagamento por 20 milhões de doses da vacina indiana Covaxin, intermediada no Ministério da Saúde pela Precisa Medicamentos.
Este contrato foi cancelado em 27 de agosto. A anulação da nota de empenho, que reservava o dinheiro, ocorreu em 2 de setembro.
Levando-se em conta a data em que o dinheiro foi reservado para as duas vacinas específicas, 22 de fevereiro, a paralisação dos recursos já dura quase oito meses.
Nem a anulação de uma das notas de empenho levou a novas destinações da verba. Nesses oito meses, já houve diversos atrasos e paralisações na vacinação, oposição do ministério à imunização de adolescentes e lentidão na dose de reforço em idosos.
Além disso, prossegue uma indefinição sobre aquisições de novas doses e sobre a vacinação em 2022.
As contratações em xeque são herança da gestão do general Eduardo Pazuello e do coronel Elcio Franco Filho no Ministério da Saúde.
A reportagem confirmou, por meio de registros da execução orçamentária do governo, que os R$ 2,3 bilhões referentes aos dois contratos estão parados, sem destinação para novas vacinas.
O Ministério da Saúde não respondeu o que pretende fazer com o dinheiro, destravado de forma emergencial por uma MP (medida provisória) assinada por Bolsonaro em dezembro de 2020.
A MP liberou R$ 20 bilhões para a compra de vacinas ao longo de 2021.
Em uma primeira resposta à reportagem, a pasta afirmou que os dois contratos e as duas notas de empenho haviam sido cancelados. Depois, o ministério disse que a anulação foi finalizada somente no caso da Covaxin. “O recurso permanece no Tesouro Nacional”, afirmou.
Sobre a Sputnik V, o Ministério da Saúde apresentou à União Química a intenção de rescisão do contrato, conforme a nova nota. “A empresa, no entanto, usando seu direito de ampla defesa, apresentou argumentação, que está em análise pelo ministério.”
O ministro Marcelo Queiroga (Saúde) já havia sinalizado a intenção de descartar o contrato da Sputnik V.
A projeção de entrega de vacinas mais recente do ministério, do último dia 13, traz os 10 milhões de doses do imunizante russo com destaque em vermelho e anotação de que o “contrato encontra-se sobrestado/em rescisão”.
A União Química fez forte lobby político, ainda no começo do ano, para pressionar a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) a liberar o uso emergencial da Sputnik V.
Para isso, a empresa escalou o ex-deputado federal pelo PSD e ex-governador do DF Rogério Rosso, que fez interlocução junto a políticos do centrão no Congresso.
Já a Precisa Medicamentos garantiu o contrato bilionário para fornecer a Covaxin, fabricada pela indiana Bharat Biotech, por meio de fraudes em documentos, irregularidades na execução do contrato e suspeitas de corrupção, que passaram a ser o principal foco da CPI da Covid no Senado.
Nos dois casos, a Anvisa deu aval apenas à importação de doses da Rússia e da Índia, sujeita a uma série de condições especiais e a uma limitação na quantidade inicial de doses. Faltaram documentos básicos para a liberação de uso emergencial das duas vacinas.
Com o acúmulo de suspeitas de corrupção na contratação da Covaxin, inclusive com a acusação de que o presidente da República prevaricou ao não levar adiante a denúncia que recebeu dentro do Palácio da Alvorada, o Ministério da Saúde suspendeu o contrato, para depois cancelá-lo de vez.
Uma nota de empenho, reservando R$ 1,6 bilhão para ser destinado à Precisa e à Bharat Biotech, ficou vigente por mais de seis meses: entre 22 de fevereiro e 2 de setembro.
O dinheiro ficou parado nesse período. E permaneceu inutilizado nos 45 dias posteriores à anulação da nota de empenho.
Queiroga aproveitou o cancelamento do contrato da Covaxin para buscar o mesmo com a Sputnik V. O ministro argumentou que a vacina russa não obteve o aval necessário da Anvisa.
As duas contratações, feitas com os preços mais altos entre os imunizantes adquiridos pelo governo brasileiro, foram centralizadas, negociadas e efetivadas pelo coronel do Exército Elcio Franco Filho, durante o período em que exerceu o cargo de secretário-executivo do Ministério da Saúde.
Elcio foi o braço-direito do general Pazuello na condução da pasta. Os dois foram demitidos em março. Logo depois, ganharam cargos de confiança no Palácio do Planalto.
Elcio e Pazuello são investigados pela CPI da Covid e devem ter responsabilidades apontadas no relatório final do senador Renan Calheiros (MDB-AL), que deve pedir o indiciamento por crimes dos dois militares.
O relatório tem votação agendada para o próximo dia 20.
Dos R$ 20 bilhões liberados por MP em dezembro de 2020 para a compra de vacinas contra a Covid-19, houve o empenho -a autorização para gastos- de R$ 18,3 bilhões (91,5%), segundo relatório de execução orçamentária da Consultoria de Orçamento da Câmara dos Deputados.
Os pagamentos efetivos, até o último dia 11, somaram R$ 11,7 bilhões (58,5%).
Já dados extraídos pela Consultoria do Senado mostram que o dinheiro antes destinado à Covaxin, no valor de R$ 1,6 bilhão, ficou sem novos empenhos desde a anulação da reserva em 2 de setembro. Os mesmos dados indicam que o dinheiro da Sputnik V segue empenhado –e sem uso.
O governo brasileiro vem fornecendo a estados e municípios quatro tipos de vacinas: a fabricada pela AstraZeneca e pela Fiocruz; a Coronavac, parceria do Instituto Butantan com a chinesa Sinovac; a da Pfizer; e a da Janssen.
O Brasil ultrapassou a marca de 100 milhões de pessoas com esquema vacinal completo contra a Covid-19, o que equivale a quase metade da população total. Com apenas uma dose, são mais de 150 milhões de pessoas, ou mais de 70% da população.
O país, porém, demorou a começar a vacinar em massa, em razão de resistência e até mesmo campanha negativa do governo Bolsonaro em relação às vacinas Coronavac e Pfizer.
Também houve diversas paralisações da imunização em estados e municípios por falta de doses.
Até agora, a dose de reforço em idosos e profissionais de saúde chegou a 1,6% da população; a vacinação em adolescentes chegou a ter recomendação contrária por parte do ministério, o que suscitou em estados e municípios a suspeita de falta de vacinas; e há um cenário de indefinição para 2022.
Na última projeção de entregas de vacinas, atualizada semanalmente pelo Ministério da Saúde, 225 milhões de doses dependiam de confirmação dos laboratórios quanto a recebimento de IFA (ingrediente farmacêutico ativo) ou de tratativas ainda em curso.
Por Vinicius Sassine