Entenda por que Brasil chega desacreditado à cúpula do clima COP26
O país nada tem de positivo para mostrar na reunião de cúpula do clima
Diz a sabedoria tradicional que ninguém sabe o que vai sair de cabeça de juiz ou barriga de mulher grávida (isso antes dos exames genéticos e de ultrassom). De representantes do governo Jair Bolsonaro na COP26, é quase certo que brotarão ideias fadadas a aumentar o descrédito do Brasil.
O país nada tem de positivo para mostrar na reunião de cúpula sobre a crise do clima em Glasgow, Escócia, a partir de domingo (31). De resultados negativos e descalabros, há abundância. Lá chegaremos como párias, e não sem motivo.
De partida, o governo brasileiro faz péssima figura no que mais importa para conter o aquecimento global em 1,5ºC acima da temperatura média antes da Era Industrial: emissões de carbono. O mundo precisa neutralizá-las por volta de 2050, mas iniciando drástica redução já em 2030, objetivo implausível à sombra do recorde registrado em 2020, apesar da parada geral pela pandemia.
Pelo ritmo presente, a atmosfera se aquecerá mais de 2ºC, possivelmente chegando a 2,5ºC ou até 3ºC, com aceleração preocupante de eventos climáticos extremos, como secas, inundações e incêndios. Isso mesmo se todas as promessas de governos nacionais forem cumpridas.
Num gráfico que repercutiu nos últimos dias, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma, ou Unep, em inglês) apresenta o Brasil como único país significativo a piorar metas assumidas para esta década. A imagem está no relatório “The Heat is On” (o aquecimento está ligado), lançado na terça-feira (26).
A manipulação da meta voluntária nacional (conhecida como NDC) começou em dezembro do ano passado. Embora reconfirmando o propósito de reduzir em 37% as emissões de gases do efeito estufa até 2025 e 43% até 2030, o Planalto deu uma pedalada climática digna da gambiarra de Paulo Guedes para furar o teto de gastos.
Em termos absolutos, os percentuais, embora inalterados, implicarão emissão adicional de 500 milhões de toneladas de CO2-equivalente (CO2eq) e 400 milhões de CO2eq, respectivamente. Não é mágica, é esperteza: o governo mudou a base de cálculo, mexendo na metodologia que estima a produção dos gases.
A premissa do Acordo de Paris (2015) era que os signatários melhorassem progressivamente seus compromissos de descarbonização. Só o Brasil se acha no direito de retroceder, ainda que manipulando dados de maneira furtiva, o que faz sua confiabilidade aos olhos dos negociadores em Glasgow descer mais um degrau para o porão da irrelevância.
As manobras não se resumem ao palácio do Planalto. No Congresso, prosperou um projeto de lei da senadora ruralista Kátia Abreu (PP-TO) que, sob o manto de melhora nas metas brasileiras para 2025 e 2030 (aumento dos percentuais respectivos de redução para 43% e 50%), contrabandeava a possibilidade de, por decreto, o governo rever a projeção de emissões em 2025.
Dito de outro modo, mais margem para prestidigitação de números. A agenda antiambiental segue a todo vapor no Parlamento sequestrado pelos interesses retrógrados do centrão, como provam repetidas tentativas para descaracterizar e afrouxar normas do Código Florestal de 2012.
Não estranha, num país que tem um quinto do PIB proveniente do agronegócio e 40% do Congresso afiliado à bancada ruralista, onde pontificam pecuaristas. A vanguarda do atraso, que tem grande superposição com a bancada BBB (boi, bala e Bíblia), à qual se deveria agregar mais um B, de bolsonarista.
Um objetivo todos comungam com o Planalto, deixar correr solto o desmatamento da floresta amazônica (20% já destruídos) e do cerrado (50% devastados). Eis o que essa aliança ecocida tem para exibir em Glasgow: aumentos seguidos nas taxas de desmatamento e queimadas durante os 34 meses de Bolsonaro na Presidência.
Computadas todas as emissões pelo agro, do desmate ao metano produzido no ventre de bovinos, o setor responde por quase três quartos (72%) da poluição climática brasileira. Eterno produtor de commodities, o país ocupa o quarto lugar entre aqueles que mais emitiram carbono ao longo da história -não para se desenvolver, mas queimando o capital natural de biodiversidade e serviços ambientais com baixa geração de empregos.
Não é folha corrida que facilite a ninguém pedir dinheiro para outros governos. Foi o que anunciou pretender o ministro neófito do Meio Ambiente e chefe da delegação brasileira para a COP26, Joaquim Leite, como ponto de partida para a negociação.
Embora não vá a Glasgow, o vice-presidente Hamilton Mourão entoou a mesma ladainha de que o Brasil precisa ser “combativo” e demandar recompensa por manter a floresta em pé -diz o general que torrou R$ 550 milhões em operações militares cenográficas para combater desmatamento, sem conseguir contê-lo.
A incoerência mais gritante do Planalto no que respeita a financiamento internacional está no Fundo Amazônia. Por implicância ideológica, Bolsonaro paralisou o programa de remuneração por desmatamento evitado mantido pela Noruega e pela Alemanha, congelando a utilização de R$ 2,9 bilhões já depositados.
É tenebroso o retrospecto da Presidência em qualquer tópico relacionado com florestas. Ibama e ICMBio, encarregados de fiscalizar e promover a conservação, foram manietados pelo passador de boiadas Ricardo Salles, alijados das incursões amazônicas por Mourão e asfixiados por Bolsonaro com torniquete nas verbas e reposição de pessoal.
O presidente também se recusa a demarcar e homologar novas terras indígenas (TIs) e quilombolas. Além de ser precondição para a sobrevivência cultural e física dos vários povos, como manda a Constituição, elas apresentam índices de desmatamento (2%) muito menores que os observados nos biomas em geral.
Nessa recusa Bolsonaro conta com o beneplácito do Supremo Tribunal Federal. A Corte se omite na decisão sempre adiada sobre a controversa tese do marco temporal, que na prática inviabilizaria o mandato constitucional (a carta de 1988 dava prazo até 1993 para homologar todas as TIs).
Sem ter o que apresentar na COP26, o governo Bolsonaro produziu novo exemplo da única coisa em que se destaca: notícias enganosas, se não fraudulentas. Na segunda-feira (25), uma cerimônia lançou o programa Crescimento Verde -que não tem metas, detalhes, custos nem fontes de financiamento.
Da boca de bolsonaristas em Glasgow sairão apenas palavras, desprovidas de lastro na realidade e inspiradas em doutrinas conspiratórias perenes entre militares. Para rebentos da ditadura militar, a questão ambiental é um pretexto de potências estrangeiras para impedir o desenvolvimento nacional.
Quem fala o que quer (em especial mentiras e falsificações), professa a mesma sabedoria tradicional, ouve o que não quer. Bolsonaro e companhia não têm honestidade nem capacidade intelectual para entender, do que se disser em Glasgow, que outras nações só prestam atenção ao Brasil por seu gigantesco potencial para causar dano ao clima da Terra.
Texto: Marcelo Leite