Doria distribui verba política a 94% dos deputados pró-ajuste fiscal e deixa opositores à míngua

A Casa tem 94 deputados, e 8 deles estavam ausentes, licenciados ou se abstiveram

O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), contemplou com a liberação de verba política 94% dos deputados estaduais que votaram pela aprovação de um projeto de lei polêmico que aumentava a carga tributária e extinguia empresas.

Já entre quem votou contra apenas 6 tiveram demandas atendidas -16%. A Casa tem 94 deputados, e 8 deles estavam ausentes, licenciados ou se abstiveram.

O PL 529 foi aprovado em outubro de 2020 por 48 votos a 37. Deputados da Assembleia Legislativa de São Paulo ouvidos pela Folha de S.Paulo relataram que o governo negociou repasses em troca de adesão à proposta, algo que aliados de Doria na Casa e membros da gestão tucana negam.

A reportagem mapeou que 45 dos 48 deputados que votaram “sim” tiveram liberação extra de recursos públicos para custeio, investimento e melhorias nas cidades onde atuam politicamente.

O então presidente da Assembleia, Cauê Macris (PSDB), não votou, como é a praxe. Hoje ele é secretário da Casa Civil de Doria e responsável por controlar esses repasses.

De janeiro a julho de 2021, Doria liberou R$ 738 milhões para 58 deputados estaduais de 15 partidos -alguns deles são suplentes e não tinham mandato na votação do PL 529. A maior parte da quantia foi ofertada a deputados aliados, e uma parcela menor (R$ 20,4 milhões), a opositores, do PT.

Essa verba política é chamada oficialmente de “demanda parlamentar” e informalmente de “emenda voluntária” ou “extra”. Ela é liberada a municípios ou entidades indicadas pelos deputados, e a decisão de quem tem direito ou não é do próprio governo.

É diferente da emenda impositiva, que é distribuída a todos os 94 deputados estaduais e cujo pagamento pelo governo é obrigatório.

A Folha de S.Paulo revelou em uma série de reportagens que Doria, que busca vencer as prévias tucanas para ser candidato à Presidência da República em 2022, multiplicou os repasses políticos neste ano, chegando a distribuir R$ 1,05 bilhão a 93 parlamentares, considerados também os valores vinculados a deputados federais e uma senadora.

No ano passado, esses repasses foram de apenas R$ 182,9 milhões. Além de Doria, que mira o Planalto, o vice-governador Rodrigo Garcia (PSDB) também pretende concorrer em 2022 –no caso, ao Governo de São Paulo.

Apesar de envolverem verba pública, a vinculação desses repasses aos deputados não é publicada pela gestão Doria. A Folha de S.Paulo fez sete pedidos por meio da Lei de Acesso à Informação para obter os dados.

O governo apenas autorizou que, em uma sala do Palácio dos Bandeirantes, a Folha de S.Paulo manuseasse cerca de 5.300 folhas de papel com informações sobre os repasses, que foram fotografadas e planilhadas pela reportagem.

Deputados reclamam que, enquanto distribui as emendas informais, a gestão Doria não terminou de pagar as emendas impositivas de 2021 e de anos anteriores. Cada deputado tem o direito de indicar cerca de R$ 5,12 milhões -R$ 161 milhões do total de R$ 481,2 milhões foram pagos neste ano.

Falta de documentação das entidades e prefeituras e outras burocracias por vezes atrasam ou impedem esses pagamentos.

Uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição) aprovada em maio passado para agilizar os repasses (via transferência direta para o fundo das prefeituras) facilitou a operação para que Doria distribuísse verbas.

O deputado estadual Carlos Giannazi (PSOL) pediu ao Tribunal de Contas do Estado e ao Ministério Público de São Paulo, com base em reportagem da Folha de S.Paulo, que os repasses de Doria sejam investigados.

O deputado também fez o requerimento de uma CPI, que precisa da assinatura de 32 colegas. Ele afirma que a Assembleia atua sem independência, como um “puxadinho” do Palácio dos Bandeirantes.

“Há uma clara afronta aos princípios constitucionais da impessoalidade e transparência, além da evidente instrumentalização do erário público para obtenção de dividendos políticos e eleitorais”, diz a peça.

A deputada estadual Adriana Borgo (PROS) fez um requerimento de informação ao governo sobre os repasses, questionando, inclusive, quando esses dados serão disponibilizados no portal da transparência.

Especialistas consultados pela Folha de S.Paulo veem descumprimento de regras de transparência e alertam que os repasses, se feitos com interesse pessoal, podem configurar improbidade e abuso de poder político, apesar de emendas serem uma moeda de troca a princípio lícita e corriqueira.

As liberações de demandas atenderam os partidos nesta ordem de valores: PSDB, DEM, PL, Republicanos, PSB, PSL, MDB, Podemos, PP, PV, PT, Cidadania, PSD, Solidariedade e Rede.

O deputado que lidera a lista, com R$ 29,1 milhões liberados, é Carlão Pignatari (PSDB), atual presidente da Assembleia e ex-líder de governo. Ele é seguido pelo atual líder de governo, Vinícius Camarinha (PSB), com R$ 21,6 milhões.

Cauê vem em terceiro, com R$ 20,2 milhões. Entre as folhas analisadas pela reportagem, havia repasses liberados pelo secretário Cauê Macris ao deputado Cauê Macris. Parlamentares afirmam que a ida dele para a Casa Civil, em maio, agilizou os pagamentos.

A Folha de S.Paulo encontrou ainda uma série de repasses de valores exatos ou próximos de R$ 20 milhões, R$ 15 milhões e R$ 10 milhões, o que indica a negociação de pacotes fechados pelo governo.

Deputados afirmam que os valores variam conforme a importância do deputado. Há ainda relatos de irritação da base com a demora em pagar o combinado.

Por meio da distribuição das verbas políticas, Doria e Garcia pretendem aumentar sua popularidade com prefeitos e eleitores do interior, além de atrair partidos e parlamentares.

No caso dos deputados estaduais, as liberações servem também para conquistar maioria legislativa e aprovar projetos, como o PL 529, que foi ruidoso por determinar a extinção de seis órgãos e a redução de benefícios fiscais no ICMS. Doria acabou voltando atrás nos benefícios para alguns setores da economia.

Segundo o governo Doria, o Orçamento de 2021 teria um rombo de R$ 10,4 bilhões caso o projeto não fosse aprovado. Após a aprovação, o aumento de receitas previsto para este ano foi de R$ 9,7 bilhões.

“Coincidentemente, os deputados que receberam mais emendas são aqueles que votaram a favor do PL 529, que aumenta o ICMS”, diz o deputado Arthur do Val (Patriota), que não foi contemplado com as verbas.

“Do mesmo jeito que o [presidente Jair] Bolsonaro faz no Congresso, Doria faz com a gente. Tenta comprar deputado com emenda. Eu não vendo meu voto.”

Campos Machado (Avante), um dos veteranos da Casa também não recebeu verbas extras e diz que elas estão atreladas ao PL 529.

“É assédio moral [do governo] agravado com o fato de eu ser oposição. Não uma oposição que de dia é oposição e de noite é situação. Gente que de dia na tribuna fala o diabo e à noite toma café no Palácio dos Bandeirantes”, afirma.

Coronel Telhada (PP) diz que as negociações por votos são escancaradas. “A gente denuncia, mas ninguém toma conhecimento. É uma pré-campanha descarada do Doria e do Rodrigo [Garcia].”

“Desde o começo do governo, eles fazem emenda voluntária. O governo ofereceu para mim [no PL 529], eu recusei. O pessoal ficou assustado: ‘Telhada, são R$ 30 milhões’, eu falei ‘não quero'”, diz.

“A população acredita que o deputado está preocupado com a cidade, porque mandou R$ 1 milhão, mas o povo não sabe que esse valor é tirado do aumento do ICMS, que é deles mesmo. É a pior maneira de fazer política, e a Assembleia está embarcando.”

Veterano que já presidiu a Casa, Barros Munhoz (PSB) diz, no entanto, nunca ter visto troca de emendas por votos. “Não tem essa relação. Em São Paulo posso afiançar que não há essa negociação.”

Munhoz diz que, em relação a governos anteriores, Doria ampliou o volume e a agilidade dos repasses, o que melhorou a relação com o Legislativo. “Isso é da natureza da governança. Em todos os estados e países, o governo luta para formar maioria.”

A distribuição aos deputados estaduais incluiu cinco petistas, apesar de eles terem votado “não” ao PL 529.

Os pagamentos em torno de R$ 2,4 milhões, no entanto, não se referem ao projeto, mas a outros acordos que envolvem obstruir menos votações importantes, segundo a Folha de S.Paulo apurou. A líder do PT, Professora Bebel, não respondeu à reportagem.

Ênio Tatto, que ocupava a Mesa Diretora como 1º secretário num acordo com Cauê, recebeu mais -R$ 8,5 milhões. Na Assembleia, PT e PSDB têm um acerto histórico para dividirem a Mesa.

Ele nega “toma lá, dá cá” e diz que seu cargo não tem relação com os valores liberados. “Se o Cauê atendeu alguma coisa a mais para mim é por consideração e mais nada. Eu sou o deputado mais antigo aqui do PT, obviamente eu tenho mais relações. É normal”, afirma.

Marina Helou (Rede) é a sexta deputada que votou “não”, mas teve valores liberados -R$ 500 mil. Segundo a deputada, ela não aceita emendas extras e esses recursos se referem a emendas impositivas de 2020 que o governo cancelou e agora está compensando.

Outros deputados votaram “sim” e, apesar disso, não receberam nenhum repasse, como Janaina Paschoal (PSL) e Roque Barbieri (PTB). O deputado Fernando Cury (Cidadania) também está nessa situação, mas porque as demandas dele não foram incluídas nos dados enviados à Folha de S.Paulo.

O deputado está suspenso por seis meses por ter apalpado a deputada Isa Penna (PSOL) e, segundo o governo, suas demandas não tramitam neste período.

O líder de governo, Camarinha, afirma que as demandas são transparentes, que o governo paga as que considera justas e que houve mais liberações em 2021 devido ao aumento de receita. Ele diz ter recebido mais verbas não por ser líder, mas por “trabalhar muito e pedir muito”.

“Não há distinção de deputado A, B ou C. Não se pede carteirinha de partido, basta ter bons projetos. Não vejo nenhum problema, é salutar para a democracia. Isso está dentro das regras”, diz.

Em relação ao PL 529, Camarinha afirma que não foi orientado a vincular demandas ao voto “sim”. “Não houve combinação de voto nem valorem combinados. Não há nada pedido em troca das demandas.”

Procurada, a Casa Civil afirmou que “os investimentos são resultado de ações sociais para enfrentar os desafios pós-pandemia”.

“Todos os parlamentares, sejam deputados federais, estaduais, vereadores ou a sociedade civil organizada contribuem com o governo do estado para identificar as demandas para melhorar a vida das pessoas. E faz isso de maneira isenta para a liberação de recursos, pois as demandas contemplam, inclusive, deputados da oposição.”

A Casa Civil não respondeu a respeito das liberações de Macris a ele mesmo. O presidente da Assembleia, Pignatari, não respondeu.

Por Carolina Linhares e José Marques

 

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