Comissão do Ministério da Saúde recomenda terapia com choque para autismo
Técnica usa uma corrente elétrica a fim de produzir uma convulsão generalizada
Mais de 50 entidades e grupos atuantes nas áreas da psiquiatria, psicologia e direitos humanos publicaram neste domingo (19) nota de protesto contra consulta pública realizada pela Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias) no SUS (Sistema Único de Saúde) sobre o tratamento com eletrochoques em pacientes do espectro autista.
Conhecida por eletroconvulsoterapia, a técnica usa uma corrente elétrica a fim de produzir uma convulsão generalizada a fim de controlar o comportamento do paciente. Esse tipo de procedimento é defendido pela Conitec para tratar comportamentos agressivos de pacientes do espectro autista no Brasil.
Mas, segundo as entidades que assinam a nota de repúdio, o método, além de arcaico, viola a convenção dos direitos humanos e é considerado como tortura pela própria ONU (Organização das Nações Unidas).
“As referências bibliográficas apresentadas no protocolo do Ministério da Saúde apontam para as situações de catatonia [caso em que psiquiatria argumenta que há evidências científicas para o seu uso] e estudos de valor científico precário. Das 17 citações para fundamentar o procedimento, nenhuma delas se dirige à questão central do documento que é o comportamento agressivo”, afirmam as entidades.
Embora apontada como recurso para tratamento de pacientes com depressão grave, a eletroconvulsoterapia no passado foi associada a torturas em pacientes e abusos cometidos por profissionais de hospitais psiquiátricos.
Em 2013, um relatório da ONU apontou que o uso do tratamento com choque para controlar o comportamento de pacientes violava a convenção da ONU contra a tortura.
No ano passado, a FDA, órgão equivalente à Anvisa (Agência de Vigilância Sanitária) nos Estados Unidos, proibiu a prática em pessoas que possam ser agressivas ou que ofereçam perigo de se machucar. A FDA justificou que o método expõe os pacientes a “risco irracional e substancial de doença ou lesão”.
O que diz a Saúde O órgão, vinculado ao Ministério da Saúde, abriu a sondagem neste mês e indicou sua recomendação favorável ao procedimento.
Procurado pelo UOL, o Ministério da Saúde informou que, na proposta de atualização do Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) do Comportamento Agressivo no Transtorno do Espectro do Autismo (TEA), não há a recomendação para o uso da eletroconvulsoterapia (ECT) e estimulação magnética transcraniana (EMT).
“Trata-se de um documento preliminar demandado para avaliação da Conitec, responsável pelas recomendações sobre a constituição ou alteração de PCDT, além dos assuntos relativos à incorporação, exclusão ou alteração das tecnologias no âmbito do SUS. Cabe destacar que a consulta pública é uma importante etapa de revisão externa dos PCDT e as contribuições da sociedade serão consideradas para elaboração da proposta final do texto”, disse o ministério, em nota.
“A pasta esclarece que o processo de avaliação de tecnologias em saúde compreende etapas como a elaboração de relatórios sobre aspectos clínicos, epidemiológicos e de diagnóstico da condição clínica avaliada; a busca por evidências científicas; análises de risco; avaliações econômicas e de impacto orçamentário; avaliação das tecnologias em outros países, além da análise qualitativa e quantitativa das contribuições encaminhadas por meio da consulta pública para serem discutidas no Plenário da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), com vistas à deliberação final”, disse.
O que inspirou a consulta Baseado num relatório intitulado “Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas do comportamento agressivo no transtorno do espectro do Autismo”, o relatório da Conitec, publicado em novembro, afirma que os resultados do procedimento “têm sido promissores”.
Na avaliação da comissão, a avaliação é fruto de “cobertura midiática” e “indicação” inadequadas ocorridas anteriormente.
“O uso da ECT da psiquiatria e neurologia declinou de maneira significativa na década de 1970 e se deu por diversos motivos: o avanço das terapias farmacológicas, uma cobertura midiática inadequada durante a luta antimanicomial e relatos de pacientes que foram submetidos a essa técnica sem indicação adequada ou até de maneira punitiva, todos esses fatores estigmatizaram o uso da ECT”, diz o texto do órgão do governo.
De acordo com o relatório, as técnicas atuais permitiriam que o método fosse aplicado de forma segura.
“Atualmente, a técnica empregada utiliza aparelhos mais modernos, permitindo uma regulação mais adequada da carga, a possibilidade de controlar o comprimento de onda utilizada e a frequência do disparo da corrente elétrica. Além disso, para conforto e segurança do paciente, são empregados anestésicos, bloqueadores musculares e fármacos que evitam os efeitos vagais do procedimento”.
Segundo as entidades contrárias, a versão do documento submetido à consulta pública faz uso de uma definição vaga e contestável do que são comportamentos agressivos. “Há estreita relação desses comportamentos com o meio, com as barreiras e com a falta de acesso a apoio e a outros direitos fundamentais, o que é frequentemente ignorado”, dizem os signatários.
“Por essa razão, urge a necessidade de uma mudança de paradigma no que se refere ao acesso à saúde e à habilitação e à reabilitação: o capacitismo e a falta de acessibilidade não podem ser combatidos com intervenções médicas”, completam as entidades contrárias à consulta pública.
O que dizem os especialistas Ao Estadão, o pediatra e neurologista infantil Clay Brites, do Instituto NeuroSaber, afirma que pessoas autistas precisam de atendimento de qualidade no sistema público e que a eletroconvulsoterapia é um “retrocesso”.
“Trata-se de uma política de saúde equivocada porque o autismo não pode ser encarado como um processo no qual essa terapia vai resolver todos os problemas. A liberação em centros específicos ou generalizados do SUS é temerária. Antes dessa preocupação, o SUS deveria buscar o atendimento correto, multidisciplinar, aplicado de maneira ampla, com as famílias, e melhorando o acesso aos pacientes que mais precisam”, diz Brites.
Para Rosana Onocko, da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva), o estímulo à compra desse tipo de aparelho preocupa não pela eficácia ou não em alguns casos, mas devido ao risco de uso sem controle.
“Uma vez que o SUS já dispõe disso [em alguns hospitais, mas sem financiamento federal], isso levanta a suspeita sobre a quem interessa essas compras”, afirmou Rosa à Folha de S.Paulo.
Na avaliação do psiquiatra Leon Garcia, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP (Universidade de São Paulo), a medida deveria ser precedida de estudos.
“Com o histórico da eletroconvulsoterapia no Brasil, qualquer passo na direção do financiamento deveria ser precedido de forte regulação e estrutura de fiscalização, porque o histórico é muito negativo”, diz relembrando os casos de mau uso desse tipo de terapia no passado. “Começar já com o financiamento de aparelhos me parece a pior maneira”.
Por Weudson Ribeiro