Bolsonaro e militares são alvo das obras que desafiam os mitos de Rosângela Rennó
Retratos em tamanho real ocupam parede das galerias da Pina Estação, em SP
Retratos em tamanho real de crianças em poses garbosas vestidas com uniformes militares ocupam agora uma grande parede de uma das galerias da Pina Estação, no centro de São Paulo. Embora as fotografias não tenham nomes individuais, a referência usada entre parênteses para distinguir um garoto do outro passa longe da ideia da infância como a fase da brincadeira.
“O Menino Louco” usa coturnos e segura uma arma; o “Garoto da Escola” fita a câmera com olhar austero, e “O Velho Nazista” segura a fivela do cinto de modo a deixar à mostra uma braçadeira de suástica. Essas crianças, contudo, não podem ser vistas com nitidez –uma grande velatura vermelha de cima a baixo do quadro recobre os retratos, tornando seus sujeitos opacos e exigindo do observador um olhar atento.
Mostrada agora pela primeira vez completa em São Paulo, as 16 fotografias da “Série Vermelha (Militares)”, de Rosângela Rennó, feita no ano 2000 com retratos tirados de álbuns de família, ganham uma nova leitura no Brasil de hoje, em que o Exército põe seus tanques para desfilar nas ruas de Brasília e fardados ocupam cargos de chefia nas instituições do governo.
“A gente não tinha como evitar a ‘Série Vermelha’ na exposição. Acho que tem um momento bom para trazer”, afirma a artista. “Por que que esse indivíduo ostenta vaidosamente essa roupa? A gente vê o quanto nunca se livrou de uma mentalidade militarista. O trabalho vira um espelho dessas estruturas, que são tão fortes na sociedade brasileira que a gente nunca se livra delas”, acrescenta a curadora, Ana Maria Maia.
A dupla selecionou cerca de 130 trabalhos de Rennó para compor a mostra “Pequena Ecologia da Imagem”, repassando 35 anos de carreira de uma das mais importantes artistas brasileiras em atividade, que tem uma produção fundamental para discussões a respeito da imagem fotográfica embora ela diga não se sentir capacitada para fazer retratos nem ter uma câmera digital além da de seu celular. A exposição será aberta neste fim de semana.
Para tratar de temas como memória, esquecimento e identidade, a artista de 58 anos se apropria de imagens existentes e as altera e recontextualiza, atuando como intérprete de fotografias dos outros. Em “Realismo Fantástico”, por exemplo, ampliou negativos de retratos três por quatro descartados por um ateliê do largo da Carioca, no Rio de Janeiro, para compor um grid onde os rostos aparecem impressos com um metro de altura, carcomidos pelas imperfeições e marcas do filme fotográfico, longe da rigidez típica das fotografias para documento.
Rennó também se livra totalmente das imagens em algumas obras, passando ao espectador a tarefa de imaginar a parte visual. Na extensa série “Arquivo Universal”, com trabalhos em diversos formatos espalhados pelos três núcleos da exposição, ela subtraiu fotos de reportagens e deixou só os textos, dos quais removeu nomes, locais e referências temporais. Nada é muito nítido ou explícito.
Um dos destaques da mostra é a instalação inédita “Eaux des Colonies”, fruto de uma residência artística em Colônia, na Alemanha, e que “vincula a água de colônia com os processos de colonização através do consumismo”, nas palavras da artista. Segundo Rennó, os processos de dominação europeia de outros países coincidem com a expansão territorial do produto a partir do século 18, inicialmente usado como elixir e mais tarde como perfume.
“No fundo é o desejo de possuir um produto sublime”, afirma ela, ao comentar o trabalho composto por 150 frascos de perfume dispostos de modo a formar um mapa-múndi. Cada vidrinho tem só álcool dentro, e está à espera de um aroma para definir seu país correspondente. Colada na parede, uma linha do tempo refaz a história da água de colônia original e de suas falsificações à medida em que se espalhou pelo mundo, trazendo a discussão de autenticidade e cópia.
Estão também expostos alguns de seus trabalhos mais conhecidos, como a série “Vulgo”, composta por fotografias do Museu Penitenciário Paulista mostrando redemoinhos de cabelos de presidiários, e também “Corpo da Alma”, em que familiares seguram retratos de entes desaparecidos. Essa obra está colocada ao lado de um trabalho pouco visto, “Coopa Roca”, do início dos anos 2000, na qual mulheres artesãs de uma cooperativa da favela da Rocinha mostram para a câmera retratos de pessoas que são importantes para elas.
‘A Espera’, obra da série ‘Anti-Cinema’, do final da década de 1980 Rosângela Rennó
“Eu estava muito ligada nessa questão da fé que o indivíduo tem na fotografia como uma forma de você impedir a morte espiritual de alguém. Quem fala isso é o [crítico de cinema francês] André Bazin, nem sou eu. Isso de você fotografar uma pessoa segurando uma imagem de uma pessoa morta, por exemplo, nasceu junto com a fotografia, com o invento fotográfico”, ela diz.
O presidente Jair Bolsonaro é referenciado numa das obras de forma indireta –um espelho circular com a palavra “mito” escrita de cabeça para baixo distorce a imagem de quem dele se aproxima, desfazendo qualquer megalomania que possa ser associada ao termo. Esse trabalho está, não por acaso, na mesma parede das crianças vestidas com uniformes militares, e é provavelmente o comentário mais direto da artista da situação política do Brasil de hoje.
“No fundo, o ‘Mito’ me incomodava um pouco. Será que não estou sendo literal demais? Tudo que é panfletário é excessivamente emocional, e tudo aquilo que se importa principalmente com o método e rigor é excessivamente cerebral. Eu fico bem quando estou num certo trabalho em que consigo dosar as duas coisas.”
PEQUENA ECOLOGIA DA IMAGEM
Quando: A partir de sábado (2/9); até 07/03/2021; visitação de qua. à seg., das 10h às 18h
Onde: Pina Estação – Largo General Osório, 66, São Paulo.
Preço: Grátis; necessário agendamento no link abaixo
Link: https://www.pinacoteca.org.br
Por João Perassolo