Bolsonaro acusa mídia tradicional de fake news em documento para cúpula da democracia de Biden – Mais Brasília
FolhaPress

Bolsonaro acusa mídia tradicional de fake news em documento para cúpula da democracia de Biden

No texto, o Brasil diz que a mídia tradicional é responsável por grande parte da desinformação que circula no país

Foto: José Cruz/Agência Brasil

Em um documento de compromissos apresentado para a organização da Cúpula da Democracia, que será realizada em Washington nos dias 9 e 10 de dezembro, o governo brasileiro acusa a mídia tradicional de desinformação e pede liberdade de expressão na internet para vozes de diferentes ideologias.

No texto, o Brasil diz que a mídia tradicional é responsável por grande parte da desinformação que circula no país e ressalta que o combate ao problema não pode acabar em censura, uma bandeira também levantada pelo ex-presidente americano Donald Trump. O governo Bolsonaro afirma frequentemente que vozes conservadoras e governistas têm sido perseguidas e censuradas por plataformas de internet e pelo Supremo Tribunal Federal, que determinou a prisão do blogueiro bolsonarista Allan dos Santos.

Integrantes do governo americano consideraram as promessas do governo brasileiro “inusuais” para a cúpula, que tem como um dos objetivos a proteção de jornalistas profissionais. O presidente dos EUA, Joe Biden, anunciará como um de seus compromissos o “incentivo à imprensa livre e independente”.

A versão final do texto ficou a cargo ao Palácio do Planalto. Inicialmente, no entanto, a ideia era defender a liberdade de imprensa de forma mais geral. A administração Bolsonaro tem sido alvo de críticas de entidades internacionais devido à intimidação sistemática a jornalistas no país.

O governo brasileiro ficou aliviado com a inclusão do país na lista de convidados para o evento e ficaria indignado caso fosse vetado. Membros do governo apontam para o fato de que países classificados de não livres, ou parcialmente livres, entraram na lista -para o Índice Global de Liberdade da Freedom House, convidados como Angola, República Democrática do Congo e Iraque são considerados “não livres”.

O governo americano levou em conta contextos estratégicos ao selecionar os convidados -o Paquistão, por exemplo, é um país-chave para o combate ao terrorismo. A Índia, considerada parcialmente livre, é um parceiro na disputa geopolítica com a China, assim como as Filipinas.

O Brasil quer usar a participação na cúpula para “reafirmar o comprometimento com a democracia, a luta contra corrupção e os direitos humanos”, temas do evento. Também quer deixar claro que o país defende a democracia, desde que respeitada a soberania dos países. A participação do presidente Jair Bolsonaro e de outros líderes se resumirá a um vídeo de três minutos e a uma discussão, na qual a presença do brasileiro não está confirmada -ele pode ser representado por algum integrante sênior do governo.

Além do discurso, cada país enviará à cúpula uma lista de compromissos voluntários. A expectativa é a de que haja uma nova reunião no fim do ano que vem, para acompanhar o andamento das metas. Como na Cúpula do Clima, realizada em abril, a ideia é que os países façam um monitoramento conjunto dos avanços uns dos outros, sem que esteja claro quais seriam as punições em caso de retrocessos.

Outras promessas a serem apresentadas pelo Brasil na cúpula são o comprometimento com o Estado de Direito, a liberdade de pensamento e expressão, inclusive na internet, a realização de eleições livres e justas e a manutenção dos avanços em direitos humanos. “As instituições democráticas do Brasil têm encarado desafios ao longo do tempo, o que demonstra sua robustez. Elas têm muito a ensinar ao mundo sobre democracia”, disse Juan Gonzalez, diretor sênior e responsável por América Latina no Conselho de Segurança Nacional, ligado à Casa Branca, em conversa com jornalistas na quinta (2).

Questionado se há temores no governo Biden de que Bolsonaro se recuse a reconhecer uma derrota nas eleições de 2022, Gonzalez disse ter “plena confiança” de que o Brasil realizará um pleito livre e justo.

O assessor de Segurança Nacional dos EUA, Jake Sullivan, em viagem ao Brasil em agosto para reiterar a oposição americana à participação de fornecedores chineses na infraestrutura do 5G brasileiro, também deu o recado de que os EUA estavam preocupados com as ameaças de Bolsonaro ao sistema eleitoral.

Do ponto de vista do governo Biden, um dos objetivos da cúpula é estabelecer uma aliança de países democráticos em oposição à China, na tentativa de isolar o regime de partido único e sem eleições livres.

A minuta de um documento em apoio à internet livre, uma forma de restringir a expansão dos padrões tecnológicos chineses, chegou a circular, mas acabou não entrando na pauta da cúpula. Assim, além das disputas geopolíticas, causou desconforto a arbitrariedade na escolha dos convidados para o evento.

A China manifestou ao Brasil irritação devido à cúpula. Os chineses externaram a posição de que os EUA não podem se considerar a instância global que determina unilateralmente quem é, ou não, democrático.

O Partido Comunista Chinês planeja lançar neste sábado (4) um relatório intitulado “China: Uma Democracia que Funciona”. Trata-se de uma alfinetada nada sutil aos EUA, que têm vivido diversas turbulências eleitorais e políticas, inclusive a resistência de Trump e de seus seguidores a aceitar o resultado da eleição que alçou Biden à Presidência, em 2020.

O fato de a Hungria ter sido excluída da cúpula também causou desconforto entre os europeus, que manifestaram insatisfação em conversas diplomáticas. A União Europeia tem uma série de problemas com o governo autocrata do primeiro-ministro Viktor Orbán, mas preferia que o déficit democrático do governo húngaro fosse assunto dos europeus, sem que fosse apontado pelos EUA.

Representantes do governo húngaro tentam bloquear a participação da UE na cúpula, dizendo que, como o país não foi convidado, não apoia um posicionamento conjunto no evento.

Na América Latina, o governo argentino insistiu para que a Bolívia fosse incluída -sem sucesso. O governo boliviano tem relações conflituosas com os EUA e chegou a expulsar o representante da Agência de Combate às Drogas (DEA, na sigla em inglês) quando Evo Morales era presidente.

Além do encontro dos líderes, haverá uma série de eventos para debater medidas práticas, como o reforço à atuação do Legislativo, de prefeitos e de sindicatos, a abertura de espaço para maior inclusão de pessoas negras, LGBTQIA+ e minorias na política e o uso de tecnologia para combater a corrupção.

Em alguns deles, países estrangeiros apresentarão estratégias que deram certo. Até a tarde de sexta (3), não havia informações se o Brasil participaria de alguma ação. Haverá também uma série paralela de debates, organizada por instituições da sociedade civil, ainda sendo montada.

Também há a expectativa de que o governo Biden anuncie novos recursos e iniciativas para a proteção de jornalistas e ativistas de direitos humanos em países onde eles correm perigo e que haja um esforço americano para convencer outros governos a darem mais recursos para programas do tipo.

Assim como nos debates ambientais, no entanto, resultados claros podem demorar a aparecer se não houver medidas consistentes, o que gera alguma frustração entre ativistas. Um deles, que ajudou na organização da cúpula, disse, sob condição de anonimato, ter ouvido que as expectativas deles teriam de ser um pouco mais baixas e que este é apenas o começo -o trabalho real só viria nos próximos meses.

“De muitas formas, a cúpula está formatada para falhar. As questões são duras, a diversidade de governos torna difícil conseguir acordos e o formato virtual acaba com as oportunidades de negociação nos corredores”, diz Benjamin Gedan, vice-diretor do programa de América Latina do think tank Wilson Center.

“Por outro lado, o evento pode dar a partida em uma conversa internacional mais urgente sobre as ameaças à democracia. A cúpula terá sucesso se conseguir isso e se gerar uma melhor coordenação entre democracias, órgãos multilaterais e organizações civis”, pondera Gedan.

Por Patrícia Campos Mello e Rafael Balago