Bolsonaro acumula dribles ao teto de gastos, e regra pode sofrer novas mudanças

A briga agora é para decidir quem bancará a fatura extra

Apenas cinco meses depois de duas emendas constitucionais ampliarem em quase R$ 115 bilhões o limite do teto de gastos para 2022, ano eleitoral, o presidente Jair Bolsonaro (PL) deu mostras públicas de que o apetite por aumento de despesas ainda não se esgotou.

O chefe do Executivo defendeu mudanças na regra para ampliar investimentos públicos, algo hoje inviável dentro dos limites estabelecidos pelo teto. O espaço adicional criado recentemente foi logo preenchido pelo reforço nos programas sociais e pelas emendas de relator, carimbadas por aliados do Planalto para beneficiar seus redutos eleitorais.

Embora tenha sinalizado que a discussão seria feita no futuro, a postura atual do governo já tem contribuído na prática para sentenciar o teto de gastos a uma nova modificação.

Como mostrou a Folha de S.Paulo, o Congresso Nacional pisou no acelerador das bondades e aprovou, com apoio da base do governo, uma bomba fiscal bilionária ao criar pisos salariais para profissionais de saúde, muitos dos quais remunerados pelo setor público. Contrariando a posição do Ministério da Economia, o Palácio do Planalto não ofereceu resistência às propostas.

A briga agora é para decidir quem bancará a fatura extra. No Congresso, já há defensores de uma nova mudança no teto para permitir a transferência de recursos a estados e municípios para financiar o piso dos profissionais de saúde.

“Tem que ver se é necessário ou não [flexibilizar o teto]. Se for, tem que fazer”, afirma o líder do União Brasil, Elmar Nascimento (BA). A legenda tem a quarta maior bancada na Câmara dos Deputados. “Pela quantidade de deputados que votou, essa é a coisa mais fácil de aprovar”, diz ele sobre mudar o limite de despesas.

A facilidade com que o Congresso Nacional tem alterado o teto de gastos é um fato. Criada em 2016, a regra sofreu sua primeira alteração estrutural em setembro de 2019, quando a equipe do ministro Paulo Guedes (Economia) viu necessidade de uma permissão expressa para transferir a estados e municípios parte do dinheiro arrecadado com o leilão de áreas do pré-sal.

De lá para cá, já foram cinco emendas constitucionais, em um intervalo de três anos, alterando o teto ou permitindo despesas adicionais fora dele. As mais recentes mudaram o cálculo do limite e adiaram o pagamento de uma parte dos precatórios (valores devidos pela União após sentença judicial definitiva).

Alguns dribles adicionais foram empreendidos usando válvulas de escape já existentes –como quando a Economia deu aval a um crédito extraordinário de R$ 7,6 bilhões para capitalizar a Emgepron, estatal militar que fabrica embarcações para a Marinha, no apagar das luzes de 2019. O próprio TCU (Tribunal de Contas da União) apontou a manobra, uma vez que o investimento na construção desses equipamentos precisaria estar dentro do limite.

Outras tentativas acabaram não vingando, como a ideia recorrente de retirar os investimentos públicos do alcance do teto. A proposta teve seu auge em 2020 com o Plano Pró-Brasil, que tinha como entusiastas as alas militar e política do governo.

Levantamento feito pela Folha mostra que a regra fiscal já sofreu ao menos 12 investidas por mudanças ou dribles no governo Bolsonaro -e está à beira de um 13º, caso o Congresso decida flexibilizá-lo para colocar os pisos salariais da saúde na conta da União.

Ao assumir o comando da Economia, o ministro Paulo Guedes defendeu em diferentes ocasiões “quebrar o piso” para não “subir o teto”, ou seja, reduzir despesas obrigatórias.

No primeiro ano da gestão Bolsonaro, o time econômico foi bem-sucedido ao obter a aprovação da reforma da Previdência, que ajudou a controlar o ritmo de crescimento dessa que é a maior despesa no Orçamento federal.

No auge da pandemia de Covid-19, Guedes também obteve no Congresso a previsão de congelamento de salários do funcionalismo em 2020 e 2021, o que pôs um freio no avanço do gasto com pessoal, o segundo maior da União.

As demais promessas de “quebrar o piso”, porém, ficaram no papel. Quando a equipe de Guedes tentou propor mudanças no abono salarial (espécie de 14º salário pago a trabalhadores formais com remuneração de até dois salários mínimos), Bolsonaro rechaçou publicamente dizendo que não poderia “tirar de pobres para dar a paupérrimos”.

A proposta de reforma administrativa, aposta da Economia para assegurar um controle de despesas mais duradouro, ficou meses engavetada na Casa Civil e, quando finalmente foi enviada ao Congresso, não teve apoio suficiente do Planalto para avançar.

A ausência de cortes adicionais em despesas consideradas ineficientes torna o cenário futuro cada vez mais desafiador. As despesas discricionárias, que incluem custeio e investimentos públicos, devem cair a R$ 108,2 bilhões em 2023 e desabar a R$ 76,7 bilhões até 2025, um valor muito próximo do mínimo necessário para manter a máquina em funcionamento.

Em avaliações reservadas, técnicos da área econômica têm o diagnóstico de que, independentemente do presidente eleito em outubro, a gestão Bolsonaro acabou inviabilizando a sustentabilidade do teto de gastos.

Ex-ministro da Fazenda e do Planejamento no governo Dilma Rousseff (PT), o economista Nelson Barbosa, colunista da Folha, prevê um passivo próximo a R$ 100 bilhões a ser resolvido pelo próximo presidente da República, o que incluiria a reversão do limite de precatórios e outras despesas que estão sendo criadas pelo atual governo.

Para Barbosa, o teto de gastos teve o mérito de segurar os gastos com a folha do funcionalismo ao não deixar espaço para pressões salariais de categorias. No entanto, ele avalia que a regra se mostrou muito inflexível.

“Toda regra muito rígida gera incentivo para ser quebrada”, diz Barbosa, fazendo a analogia de que “até panela de pressão precisa de uma válvula para não explodir”. Para o ex-ministro, a restrição excessiva gerada pelo limite, principalmente sobre investimentos, incentivou o Congresso a carimbar para si uma fatia maior do Orçamento por meio das emendas de relator.

Barbosa defende uma mudança no teto para permitir algum crescimento real e aplicá-lo apenas sobre as despesas correntes, com um subteto para a folha de pessoal. Para os investimentos, a ideia seria uma programação em bases plurianuais.

A combinação dessa meta de gastos com a arrecadação resultaria em uma trajetória da dívida pública. Em caso de frustração da trajetória prevista, o ajuste seria perseguido no ano seguinte -evitando a prática atual de bloqueios e contingenciamentos que acabam segurando o gasto nos primeiros meses e, muitas vezes, liberando no final do ano.

À frente da equipe que criou o teto de gastos, em 2016, o ex-ministro da Fazenda Henrique Meirelles faz um diagnóstico distinto. Para ele, o limite foi feito de forma rígida justamente para reduzir o tamanho da máquina pública, mas com um prazo determinado de 20 anos.

Em sua avaliação, a regra foi bem-sucedida ao reduzir a despesa como proporção do PIB (Produto Interno Bruto) e resgatar a confiança de investidores no país.

“Minha visão é que a credibilidade do teto está intacta. O que está arranhada é a credibilidade da política fiscal”, afirma. “Com um governo entrando e seguindo o teto rigorosamente, ele tem o seu valor restaurado automaticamente.”

Para Meirelles, a lista de investidas contra o teto mostra a perda de credibilidade da política fiscal do atual governo. Ele alerta que, se o pressuposto para o futuro for a continuidade da expansão dos gastos, então de fato haverá um problema. “Mas não é do teto, e sim da política fiscal.”

“O que pode ser feito? Tem que cortar despesas permanentes, pois não há mais espaço para cortar investimentos”, diz o ex-ministro do governo Michel Temer (MDB). Ele argumenta que há espaço para ampliar a participação do setor privado nos investimentos, sobretudo em infraestrutura.

Idiana Tomazelli 

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