Posse de Lula há 20 anos é marco de quebras de protocolo e estilo 'povão' – Mais Brasília
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Posse de Lula há 20 anos é marco de quebras de protocolo e estilo ‘povão’

Inovações e quebras de protocolo na solenidade são simbólicas não só do perfil dos mandatários, mas também dos governos que se propõem a fazer

Foto: Ricardo Stuckert/PR/Divulgação

A sensação de “já vi isso antes” pode surgir com a nova posse de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), mas algumas das cenas na primeira vez que o petista assumiu a Presidência, em 1º de janeiro de 2003, foram marcadas por ineditismos que inspiraram outras cerimônias desde então.

Inovações e quebras de protocolo na solenidade são simbólicas não só do perfil dos mandatários, mas também dos governos que se propõem a fazer. A informalidade evoluiu a tal ponto que em 2019 Jair Bolsonaro (PL) beijou na boca a primeira-dama Michelle após pedidos da plateia.

No evento de Lula de 20 anos atrás, os pontos de destaque foram a volumosa participação popular e o discurso aberto ao público no parlatório do Palácio do Planalto, em vez de ser feito no interior do Congresso, como era o habitual.

A vontade do PT era romper com certas tradições para celebrar a chegada de um homem de origem pobre ao cargo mais importante do país. Apesar das adaptações, foi seguido o decreto federal de 1972 que estipula ritos obrigatórios, como a previsão de que o eleito seja recebido no palácio pelo mandatário que está de saída.

A ocasião também imprimiu ares de normalidade à transição de poder, com a ascensão de um nome de oposição a Fernando Henrique Cardoso (PSDB), após sobressaltos que tinham impedido desde a redemocratização a passagem do cargo de um presidente eleito pelo voto direto a outro.

Se parte do que foi visto na época deve se repetir, com o plano do PT de ter novamente uma “festa popular” e aproximar o governante dos governados, a característica da alternância pacífica ficará de fora desta vez.

O mandatário de saída da cadeira não estará no ato para entregar a faixa ao sucessor. Outra diferença agora é a ameaça de violência vinda de bolsonaristas que contestam a posse de Lula, o que levou à adoção de cautela extra pelo PT e ao reforço do esquema de segurança.

Bolsonaro também teve uma posse festiva com seus apoiadores –115 mil pessoas, segundo estimativa do Gabinete de Segurança Institucional. A surpresa da época foi o pronunciamento de Michelle em Libras (Língua Brasileira de Sinais).

Durante a fala, atendendo aos gritos de “beija, beija”, ela deu dois selinhos no marido, que em seguida acenou para a multidão em êxtase.

Desta vez, a futura primeira-dama, Janja Silva, responde pela organização do evento, com influência direta no cerimonial e na agenda de shows que tomará a Esplanada dos Ministérios. É um papel semelhante ao que teve em 2003 o falecido Duda Mendonça, marqueteiro que tinha cuidado da campanha.

Pelo lado do PT, um dos coordenadores foi o então deputado federal Paulo Delgado.
“Todo o esforço era para transmitir a emoção de um operário, migrante, sindicalista e criador de partido que chegou lá como consequência de um processo que foi mais de mobilização popular do que de engenharia política”, relembra ele, que é sociólogo.

A euforia dos militantes era tamanha que alguns entraram no espelho d’água do Congresso para chegarem perto do mandatário. Outros romperam os cordões de isolamento e burlaram a segurança para abraçá-lo. Ele chegou a ser agarrado pelo pescoço por um homem, que pulou dentro do Rolls-Royce presidencial enquanto desfilava. Uma das bandeiras lançadas na direção do carro até atingiu Lula.

Foram, segundo cálculo oficial feito na época a pedido da Folha, 71 mil espectadores –menos do que os 150 mil divulgados inicialmente pela Polícia Militar.
Delgado se recorda do estado de agitação geral, inclusive de FHC, que “passou a faixa com aquela fidalguia”, um gesto que não se repetirá agora.

A transmissão do adereço têxtil produziu também uma cena simbólica da cordialidade: Lula se abaixou para pegar no chão os óculos do tucano, que caíram enquanto ele tirava a faixa de seu ombro.

Para o ex-parlamentar, outra diferença agora será a necessidade de reproduzir no evento a imagem de frente ampla essencial para o êxito do petista. “Isso tem que estar contemplado na foto. O pluripartidarismo e o terceiro setor foram eixos da vitória, que não se deu por ampla maioria.”

“Lula tem que mirar a foto da união e, para isso, tem que fazer uma entrada triunfal”, diz Delgado.
Segundo Solange Prediger, que comparou as posses de Lula e de Bolsonaro em uma pesquisa de seu doutorado em comunicação na UFSM (Universidade Federal de Santa Maria), a lógica instantânea e efêmera que as redes sociais levaram à política foi incapaz de anular o peso icônico do evento.

“É um momento oficial, que pode e deve ser usado para definir a linha de governo. O presidente ‘dá a cara’ de sua gestão, se aproxima ou se distancia do povo, apresenta seus líderes e indica o norte para o país”, comenta.
A relações-públicas diz que Bolsonaro, por exemplo, manteve novidades na cerimônia inseridas pelo adversário na eleição deste ano e seguidas por Dilma Rousseff (PT), como a opção pelo discurso no parlatório, “no intuito de se aproximar também do povo brasileiro”.

vê, no entanto, contradições entre sinalizações da posse e o governo em si. O inédito discurso da primeira-dama antes da fala do presidente –e em Libras– parecia querer “mostrar a força que a mulher e a comunidade surda teriam no seu governo, mas isso não se cumpriu”, avalia Solange.

Outros gestos, no entanto, anteciparam de certa forma elementos do governo, como o destaque para o filho Carlos Bolsonaro. O vereador pelo Republicanos no Rio de Janeiro desfilou com o pai e a primeira-dama, acomodado na parte traseira do Rolls-Royce, algo incomum.
Ao longo do governo, Carlos esteve na retaguarda da comunicação oficial, principalmente em redes sociais, função que também desempenhou nas campanhas de 2018 e 2022.

Coautor de um trabalho acadêmico sobre a primeira posse de Lula, o sociólogo e doutor em comunicação Afonso Albuquerque descreveu o evento como “um coroamento do processo de redemocratização do país” após a ditadura militar (1964-1985), por ter materializado a alternância de poder.

Depois de uma campanha em que o resgate da democracia foi o mote do petista, Albuquerque diz ver o retorno como “a transição de um estado de incerteza para um estado de afirmação das instituições”, mas pondera que só as simbologias da data não são suficientes para uma guinada.

“A posse será um marco do início, não da consolidação do processo de pacificação. Isso é um projeto a ser construído com calma, no devido tempo”, diz o professor da UFF (Universidade Federal Fluminense). “Mas posse tem um elemento intrínseco, que é festa. E festa é sempre uma mensagem muito poderosa.”

Por Joelmir Tavares