Vetos de Bolsonaro em substituta da Lei de Segurança Nacional são graves, mas nem todos, dizem especialistas

O novo texto entra em vigor contados 90 dias desta quinta-feira (2)

O presidente Jair Bolsonaro sancionou com vetos parciais o projeto que revogou a Lei de Segurança Nacional (LSN), editada na ditadura militar (1964-1985) e que define os crimes contra o Estado democrático de Direito.

Com a sanção presidencial, a LSN está definitivamente revogada, mas parte dos crimes aprovados pelo Congresso estão vetados. O novo texto entra em vigor contados 90 dias desta quinta-feira (2).
Apesar da repercussão negativa, nem todos os vetos feitos pelo presidente podem ser considerados ruins ou injustificados, segundo especialistas consultados pela reportagem, como é o caso da suspensão do item sobre fake news em massa.

Para Ricardo Campos, professor na Universidade de Frankfurt e diretor do Instituto LGPD, o artigo foi mal redigido e possui ambiguidades. Ele aponta ainda que, por questões probatórias, o texto dificilmente seria aplicado.

Campos avalia que a prioridade deveria ser implementar deveres e obrigações para as plataformas em vez de focar no indivíduo. “O direito penal dificilmente sozinho atinge o objetivo pretendido. Ele sempre deve atuar como um apoio e nunca em primeiro plano.”

Além disso, o enquadramento neste crime só se daria quando a disseminação ocorresse pelo uso de expediente “não fornecido diretamente pelo provedor de aplicação de mensagem privada”.

De acordo com Francisco Brito Cruz, diretor do Internet Lab, para além da abertura de alguns termos, o problema principal do texto é que ele estaria voltado para um problema de hoje. “Como esse dispositivo vai envelhecer no tempo é uma incógnita”, diz.

“O que vai ser isso no futuro? O que vai ser isso no momento em que não for mais o provedor de mensagem instantânea ou privada dominante no Brasil? E se algum provedor de mensageria privada oferecer o serviço?”, questiona Cruz.

Há dois vetos de Bolsonaro, porém, considerados particularmente graves, sendo que um deles não teve sequer justificativa.

O texto aprovado pelo Congresso previa três casos de aumento de pena: quando os autores fossem militares ou funcionários públicos e em caso de uso de arma de fogo. Bolsonaro vetou os três, mas justificou apenas os dois primeiros.

A advogada criminalista Marina Coelho de Araújo, presidente do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), entende que o item que mencionava armas de fogo deveria ter sido mantido. “Como a gente tem uma sociedade já bastante violenta, é importante que o Estado reprima crimes com armas de fogo”, diz. “A sistemática do Código [penal] costuma aumentar quando é caso de arma de fogo.”

Também o professor de teoria e história do direito da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) Diego Nunes criticou esse veto. “Não tem nada [justificando]. Isso é muito grave, o veto tem que ser motivado”, afirma. “Claramente entra um pouco na lógica do atual governo, na ideia de liberação de armas.”

Outro ponto criticado foi o veto ao item que criminaliza o atentado ao direito de manifestação. Tal artigo proibia “impedir, mediante violência ou grave ameaça, o livre e pacífico exercício de manifestação de partidos políticos, de movimentos sociais, de sindicatos, de órgãos de classe ou de demais grupos políticos, associativos, étnicos, raciais, culturais ou religiosos”.

No veto, Bolsonaro argumenta que tal item geraria grave insegurança jurídica para os agentes públicos das forças de segurança, diante da dificuldade de caracterizar o que seria uma manifestação pacífica, o que “poderia ocasionar uma atuação aquém do necessário para o restabelecimento da tranquilidade, e colocaria em risco a sociedade”.

De acordo com o texto vetado, a pena seria aumentada em caso de lesão corporal grave ou morte.
Para Camila Asano, diretora de programas da Conectas Direitos Humanos, a mudança tenta blindar agentes de segurança que reprimem manifestações.

“Não é de hoje que existe uma seletividade na maneira como protestos são reprimidos por agente de segurança, às vezes de forma violenta e com uso desproporcional da força. O Congresso deve derrubar esse veto a fim de garantir o direito à livre manifestação.”

A professora de direito constitucional Tayara Lemos, da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora), critica ainda que o veto a este trecho seja justificado com base no interesse público.

“Vetar esse dispositivo me parece uma espécie de tentativa de legitimar o Estado a punir com morte ou lesão corporal para restabelecer o que ele julga como ordem e tranquilidade, sobrepondo a possibilidade de repressão do Estado aos bens jurídicos ‘vida e integridade física'”, disse.

Outro veto do presidente barrou o aumento de pena em um terço para militares e funcionários públicos.
Apesar de Bolsonaro ter apontado que, no caso dos militares, o artigo “viola o princípio da proporcionalidade, colocando o militar em situação mais gravosa que a de outros agentes estatais”, na realidade o projeto trazia a mesma previsão para funcionários públicos.

Segundo Nunes, o texto aprovado pelo Congresso estabelecia isonomia entre agentes estatais, civis ou militares, aplicando uma maior reprovação para a conduta de qualquer um deles. “A disposição valeria igualmente para servidores civis de carreira, comissionados ou agentes políticos, inclusive eleitos, nos termos do art. 327 do Código Penal.”

O veto traz ainda o argumento de que a previsão de perda de patente ou posto para militares viola o que está previsto no artigo 142 da Constituição, que vincularia a perda do posto e da patente a uma decisão de um tribunal militar em tempos de paz, ou de tribunal especial em tempos de guerra.

Coelho avaliou que tecnicamente a fundamentação quanto à perda de patente se sustenta. “Faz sentido, porque a gente ainda tem sim na Constituição essa estrutura em que a patente não vai ser automaticamente destituída por um tribunal comum.”

Coelho concorda com o argumento utilizado para vetar o aumento de pena para funcionários públicos. Ela pontua que, da forma como o projeto foi aprovado, mesmo em casos em que o crime em si não tenha relação com a função da pessoa, ela teria uma pena automaticamente elevada.

Já Nunes considera que a lógica da lei foi de que aqueles que trabalham para o efetivo funcionamento das instituições democráticas teriam uma responsabilidade a mais na defesa dessas instituições do que o cidadão comum.

Texto: Renata Galf

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