Turquia desafia EUA e anuncia maior cooperação militar com a Rússia
Isso significará a compra de uma segunda leva de sistemas antiaéreos S-400
Em desafio direto aos Estados Unidos, com recado à rival Grécia e num reflexo da realidade geopolítica pós-retirada americana do Afeganistão, a Turquia anunciou que vai aprofundar a cooperação militar com a Rússia.
Na prática, isso significará a compra de uma segunda leva de sistemas antiaéreos S-400 e, posteriormente, “construção de motores de aviões de combate, navios e projetos conjuntos, como submarinos”, segundo disse o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan.
Ele falava com jornalistas de seu país no avião presidencial ao voltar de uma reunião com o russo Vladimir Putin no balneário de Sochi, nesta quinta (30/9).
Segundo ele, foi discutido “como impulsionar a cooperação militar a um nível superior”. Enquanto ideias de planos conjuntos sejam apenas hipotéticas e geralmente retóricas, a questão dos S-400 é bem real, e o conjunto da obra representa um problema para o Ocidente.
A Turquia é um membro dos mais estratégicos da Otan, a aliança militar liderada pelos EUA, por ser o único que integra também o Oriente Médio.
Da base turca de Incirlik, onde há talvez 50 bombas nucleares táticas americanas estocadas, partiram diversos ataques ocidentais nos conflitos na região nas últimas décadas.
Em 2018, a Turquia anunciou que iria comprar o poderoso S-400, considerado um dos mais eficazes sistemas de defesa aérea do mundo. Os EUA protestaram, mas Erdogan foi em frente e em 2019 começou a receber sua encomenda de US$ 2,5 bilhões.
Ato contínuo, os americanos desligaram Ancara do programa de desenvolvimento do caça de quinta geração furtivo ao radar F-35, já com 4 de 30 aviões prontos para entrega aos turcos –que iriam fazer partes da aeronave como parte da cadeia produtiva internacional do modelo.
Erdogan já havia gasto US$ 1,4 bilhão no projeto, e negocia reparações. A alegação americana era de que operar o S-400 no mesmo ambiente que o F-35 poderia revelar ao sistema russo eventuais fragilidades do caça americano.
O problema colocado é a suspeita americana que poderia haver algum tipo de acesso a essas informações aos russos, que ajudam os turcos a operacionalizar os sistemas.
A Otan também chiou, dado que a aliança preza pela interoperacionalidade dos sistemas de armas que emprega, para ter uma ordem unida em caso de conflito justamente com a Rússia.
O corolário da situação, de que o clube teria acesso ao funcionamento de uma arma temida do adversário, foi convenientemente esquecido no debate. Mais grave, os EUA aplicaram sanções econômicas à Turquia no fim de 2020, como punição pela aquisição.
A questão maior, claro, é política. Desde 2014, quando Putin anexou a Crimeia para evitar que a derrubada do governo pró-Kremlin em Kiev jogasse a Ucrânia no colo da Otan, como o país deseja até hoje, a relação entre a aliança e Moscou é a pior desde a Guerra Fria.
Em junho deste ano, houve um dos mais graves incidentes no processo, no qual um navio britânico passou por águas que a Rússia considera suas perto da península anexada no mar Negro, e foi recebido com tiros reais de advertência e bombas jogadas por caças. Isso na esteira de uma quase volta do conflito na Ucrânia.
De seu lado, Erdogan tem ampliado a posição de independência ante a um Ocidente do qual desconfia, em especial depois que os EUA se recusaram a extraditar o acusado de inspirar o golpe de Estado frustrado que sofreu em 2016.
Nesse balé entre Putin, com quem a Turquia tem uma complexa relação de disputa e cooperação. Os países quase foram às vias de fato por apoiar lados diferentes na guerra civil Síria, e hoje mantém uma tensa ação conjunta por lá.
Já na Líbia, as diferenças continuam, com acusações mútuas. No Cáucaso, em 2020 Erdogan jogou alto ao apoiar com armas e logística a ofensiva azeri que derrotou a Armênia, aliada russa, e reconquistou parte das perdas territoriais que Baku havia sofrido nos anos 1990.
Os russos intervieram de forma relutante, dado que o então governo armênio não era muito simpático a Putin, e saíram como garantidores da paz, ainda instável. Mas uma nova realidade regional se mostrou.
A indústria militar turca tem feito notáveis avanços, como por exemplo com uma ampla família de drones. O Bayraktar-TB2 fornecido aos azeris é visto como um dos fatores do sucesso militar na guerra do ano passado.
Mas, até por ser uma potência média, Ancara enfrenta problemas com desenvolvimentos mais ambiciosos. Planeja seu próprio caça de quinta geração, para substituir os 260 F-16 que seriam paulatinamente trocados pelos F-35.
Agora, ao falar em cooperação em motores de caça, na realidade namora a ideia de comprar equipamentos russos que já lhe foram ofertados antes. Seriam modernos e bem-sucedidos caças Su-35 e talvez até modelos de quinta geração Su-57, com acidentada carreira, ou o planejado Sukhoi Checkmate.
Já a questão dos submarinos pode introduzir modelos diesel-elétricos da classe Kilo nos estaleiros de Gölcük, que há anos produzem modelos sob licença alemães. Ancara opera 12 submarinos. Mas esse é um plano menos tangível a essa altura.
Há também a rival histórica turca Grécia, que também faz parte da Otan e com quem Ancara tem diferenças na bacia do Mediterrâneo.
Nas últimas semanas, o governo em Atenas anunciou um pacote de compras militares da França: três fragatas e ampliação de um pedido de caças avançados Rafale para 24 unidades, tudo ao custo de EUR 6,8 bilhões.
A posição turca reflete também novos tempos. A retirada americana do Afeganistão, deixando o frágil governo fantoche do país à mercê da retomada do poder pelo Talibã, foi lida em todos os cantos como um recado sobre o comprometimento de Washington com seus aliados.
Na semana passada, Erdogan, que tem uma política externa audaciosa e que não limita cartas militares, deixou isso claro. “No futuro, ninguém vai poder interferir no tipo de sistemas de defesa que nós vamos adquirir”, afirmou à rede americana NBC.
Já o Departamento de Estado respondeu em nota, afirmando que “nós exortamos a Turquia a não manter o sistema S-400 e a não comprar nenhum outro equipamento militar russo”. Não parece que deu muito certo, colocando do mesmo lado russos e turcos, que têm interesses estratégicos divergentes, mas pragmatismo de sobra.
Por Igor Gielow