Rússia sob ameaça da Ucrânia é justificativa bélica de Putin, diz historiador inglês – Mais Brasília
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Rússia sob ameaça da Ucrânia é justificativa bélica de Putin, diz historiador inglês

“De jeito nenhum a Ucrânia apresenta ameaça para Putin”, diz o historiador

Foto: Reprodução

Não há nada de muito novo na justificativa que o presidente russo Vladimir Putin usou nesta semana para invadir a Ucrânia. Em um mundo pautado por um sistema internacional e pela ideia de guerras justas, uma das maneiras mais eficientes de atacar um país é dizer que se sente ameaçado por ele.

“De jeito nenhum a Ucrânia representa uma ameaça para Putin, mas ele sabe que precisa apresentar a ideia de uma ameaça”, diz o historiador britânico Jeremy Black, autor de “A Short Story of War” (uma breve história da guerra).
“Ele diz, portanto, que a entrada da Ucrânia na Otan seria uma ameaça para a Rússia.” Na linguagem técnica, esse é o “casus belli” do russo. Sua justificativa bélica.

O problema, afirma Black, é que esse tipo de argumento é infeccioso. O “casus belli” de uma guerra vira o “casus belli” de outra”, e regiões acabam imersas em um ciclo de conflitos de que não conseguem mais escapar. Por isso a invasão russa preocupa tanto o mundo, segundo o historiador. Há guerras em outras partes do globo. Mas o confronto em Kiev é o que tem mais potencial, agora, de se espalhar para o resto do mundo e minar a própria ordem internacional.

PERGUNTA – O senhor escreveu um livro sobre a história das guerras. Tendo isso em vista, surpreendeu-se quando o presidente russo Vladimir Putin tenha anunciado a invasão da Ucrânia?
JEREMY BLACK – O que Putin disse em seu discurso está alinhado à sua visão estratégica da cultura russa, e não às ideias modernas da soberania dos Estados nacionais. Para Putin, essas regiões da Ucrânia não são Estados nacionais e a democracia não tem validade moral. Para nós que vivemos em uma democracia -o Brasil, o Reino Unido- essa abordagem é anacrônica.
O que esperamos de um “casus belli” é que haja uma ameaça imediata à nossa integridade. De jeito nenhum a Ucrânia representa uma ameaça para Putin, mas ele sabe que precisa apresentar a ideia de uma ameaça.
Ele diz, portanto, que a entrada da Ucrânia na Otan seria uma ameaça para a Rússia. De maneira geral, o problema desse tipo de argumento é que ele é pernicioso para as relações internacionais. Em regiões onde há constantes conflitos, eles viram a norma e, assim, fica difícil limitar os embates. O “casus belli” de uma guerra vira o “casus belli” de outra.

P. – Putin justificou seu ataque como uma defesa da Rússia…
JB – Líderes frequentemente dizem que precisam declarar guerra para se proteger, quer seja no sentido territorial ou espiritual. Mas esse argumento faz com que a gente escorregue rapidamente para uma situação em que o conflito é a regra.
Imagine que Putin tenha sucesso e estabeleça um Estado-cliente na Ucrânia. Qualquer tentativa dos cidadãos ucranianos de criar um espaço civil para discutir a política local vai ser entendido como um ato de violência, como uma ameaça.

P. – Nos últimos dias, houve debate sobre se a Rússia tem uma razão “legítima” para declarar a guerra. Essa preocupação existia nas guerras que foram travadas séculos atrás?
JB – Havia uma necessidade de justificar uma guerra entre potências cristãs. Por exemplo, entre Espanha e Portugal. Era preciso apresentar uma razão para um conflito que mataria outros cristãos. No caso de guerras contra muçulmanos, por outro lado, havia um estado constante de animosidade -o conflito existia, não precisava ser criado.
No caso da Rússia, Putin está aparentemente se apresentando como uma expressão do destino do país, e essa é uma ideia perturbadora. Reduz uma sociedade complexa, em que o debate é possível, a um indivíduo apenas.

P. – Como o senhor compararia esse episódio com outras declarações de guerra no passado recente?
JB – Desde a fundação das Nações Unidas, em 1945, existe essa percepção de que é necessário justificar conflitos para que estejam de acordo com o estatuto. A maneira corriqueira de fazer isso é dizer que existe uma ameaça. No caso da invasão americana ao Afeganistão em 2001, os EUA acusaram o governo do Talibã de abrigar os responsáveis pelos ataques do 11 de Setembro. Isso acontecia também antes da ONU, aliás. Antes da Alemanha nazista invadir a Polônia, o Terceiro Reich buscou desculpas para usar de propaganda para seu próprio povo e para os países neutros.
É raro que alguém acorde e diga: estamos agindo corretamente ao declarar uma guerra sem haver nenhuma ameaça. Mesmo o Estado mais volátil do mundo, a Coreia do Norte, justifica seus disparos de mísseis como uma maneira de fazer seus interesses serem ouvidos pela comunidade internacional. Buscam desculpas. Eles não estão dizendo: só estamos disparando mísseis, mesmo.

P. – A invasão da Ucrânia tem atraído bastante atenção nestes dias. Mas há outros países em guerra há anos que não recebem nenhuma atenção. O que explica isso?
JB – A guerra mais grave no mundo até esta era a da Etiópia. Muitas pessoas foram mortas ali, mas o conflito tem sido ignorado. Também há violência de larga escala em Mianmar. As pessoas sabem disso, mas em geral fazem pouco caso.
A razão pela qual acredito que tanta gente se preocupa com a Ucrânia é porque a Rússia tem a capacidade de transformar um conflito regional em uma guerra de grande escala. Isso vale também para os Estados Unidos e para a China. Além disso, como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, a Rússia tem o poder de destruir a arquitetura das relações internacionais. Existe hoje um desafio fundamental à ordem global.

Por Diogo Bercito