Projeto em Portugal prevê penalizar médicos caso pacientes façam aborto
O plano também pretende incluir a incidência ou não de infecções sexualmente transmissíveis nas mulheres como indicador de avaliação
Embora a interrupção voluntária da gravidez até dez semanas de gestação seja legal em Portugal desde 2007, um projeto de reforma no sistema de avaliação de desempenho dos médicos de família pode penalizar profissionais cujas pacientes decidam abortar.
O plano também pretende incluir a incidência ou não de infecções sexualmente transmissíveis nas mulheres como indicador de avaliação dos profissionais. O projeto, que ainda está sob avaliação do Ministério da Saúde, foi revelado pelo jornal Público e ganhou enorme repercussão no país, com direito a um acalorado debate no Parlamento na terça (10).
As mudanças dizem respeito a profissionais que atuam nas chamadas Unidades de Saúde Familiar do tipo B, nas quais parte do salário é variável, vinculada ao cumprimento de certos critérios de desempenho, incluindo o planejamento familiar dos pacientes. Pelo projeto, a “ausência de interrupção voluntária de gravidez” nos 12 meses anteriores seria considerada na avaliação e, portanto, teria influência no valor da remuneração ligada ao desempenho dos profissionais de saúde.
A ausência de diagnóstico de infecções sexualmente transmissíveis em mulheres nos 12 meses anteriores à data de referência também se tornaria critério de monitoramento.
O médico João Rodrigues, coordenador para a reforma dos cuidados de saúde primários, defendeu as mudanças apontando a necessidade de avaliar os profissionais e de criar estímulos de desempenho. “Esse indicador pode e deve ajudar na aposta que se deve fazer na prevenção”, disse ao Público. “Cientificamente como é que posso medir a atividade preventiva? Só se tenho ou não IVG [interrupção voluntária da gravidez], porque o resultado final é esse.”
Rodrigues argumentou ainda que o objetivo das mudanças é melhorar a qualidade do atendimento, com maior disponibilidade de consultas e de fornecimento de informações às pacientes, diminuindo o número de gestações indesejadas. Segundo ele, o impacto dos novos indicadores sobre os salários dos profissionais seria muito baixo.
O presidente da Ordem dos Médicos, entidade que regula a prática médica no país, declarou-se contra a proposta de alteração. Em entrevista à rádio TSF, Miguel Guimarães afirmou que a gravidez não é uma doença e que, portanto, não pode ser incluída como critério de avaliação. “Não faz sentido, é uma situação totalmente inaceitável e inadmissível”, afirmou, destacando que a interrupção da gravidez é um direito fundamental e adquirido das mulheres.
A FNAM (Federação Nacional dos Médicos) também se posicionou contra a proposta. “A monitorização das doenças sexualmente transmissíveis nas mulheres –que não tem paralelo nos homens– configura discriminação de gênero inaceitável”, disse a entidade, segundo a qual a alteração “traduz uma visão patriarcal da sexualidade” feminina.
A federação classificou a inclusão da interrupção voluntária da gravidez entre os critérios de avaliação profissional como “sinal de um retrocesso civilizacional e ideológico incompreensível”, que responsabilizaria os trabalhadores da saúde “por uma decisão pessoal, que interessa apenas às pessoas com útero”.
A proposta veio à tona poucos dias após o debate sobre esse mesmo direito esquentar nos Estados Unidos, com o vazamento de um documento da Suprema Corte indicando que o tribunal deve agora reverter um entendimento que amparava a garantia nacional ao procedimento.
A repercussão do projeto português chegou rapidamente ao Parlamento, onde já havia uma sessão programada com a ministra da Saúde para a discussão do orçamento para a área em 2022.
Marta Temido foi interpelada sobre as alterações por representantes de partidos de diferentes espectros políticos, da centro-direita aos comunistas, e destacou que a inclusão da interrupção voluntária da gravidez como critério de falha no planejamento familiar foi proposta por um grupo técnico, não pela pasta.
“Pode-se discordar ou concordar, mas, quando deixarmos de debater, deixamos de servir para aquilo que é a nossa função”, afirmou.
“Acho que todos entendem a circunstância de ser feita uma IVG, para as mulheres que a fizeram, que é algo profundamente penalizador sob o ponto de vista da saúde física e mental. Não considerar esse aspecto é hipocrisia.”
O Ministério da Saúde, de toda forma, não se pronunciou oficialmente sobre a proposta. O aborto até as dez semanas de gestação foi descriminalizado em Portugal em 2007, após um referendo. O país tem uma das legislações mais restritivas da Europa quanto ao tempo de gestação: na vizinha Espanha, a interrupção da gravidez é possível até a 14ª semana de gestação e na Holanda, até a 22ª.
O último relatório nacional da DGS (Direção-Geral da Saúde) com dados sobre as IVGs foi divulgado em 2019, com informações referentes ao ano de 2018. Entre 2011 e 2018, houve uma queda de 28% no número de abortos realizados no país.
Segundo as autoridades, entre os principais fatores que levaram a esse resultado estão campanhas de orientação e de escolha de métodos contraceptivos após o procedimento.
Por Giuliana Miranda