Parada reúne milhares na Hungria contra lei anti-LGBT
Nos últimos dois anos, Orbán promoveu uma escalada de ataques a direitos LGBT
Milhares de pessoas participaram neste sábado da Marcha do Orgulho de Budapeste, que neste ano teve como tema principal o protesto contra a chamada lei anti-LGBT do governo do nacionalista Viktor Orbán.
A edição anterior da marcha, em 2019, atraiu cerca de 20 mil pessoas, segundo os organizadores. Apesar da ainda presente pandemia de Covid-19, eles esperavam presença maior na parada deste ano, que começou às 15h (horário local, 10h no Brasil), por causa do acirramento da polarização política no país.
Nos últimos dois anos, Orbán promoveu uma escalada de ataques a direitos LGBT, entre eles a proibição de que transgêneros possam mudar de nome e a definição legal de família como apenas aquela formada por um pai do sexo masculino e uma mãe do sexo feminino.
Na investida mais recente, o governo, que controla mais de dois terços do Parlamento húngaro, aprovou uma lei que proíbe “disponibilizar a menores de 18 anos pornografia ou representação da sexualidade para seus próprios fins, ou que implique qualquer desvio da identidade do sexo com o qual a pessoa nasceu, ou mudança de gênero e homossexualidade”.
Em março, Orbán já havia processado uma emissora de TV por mostrar uma família LGBT em um comercial. O governo também proibiu a circulação de um livro de contos de fadas que incluía relações homoafetivas.
Outro ingrediente que ajudou a fermentar o protesto deste sábado é a eleição do próximo ano, na qual o premiê conservador deve enfrentar o candidato de uma frente única de oposição, formada por seis dos principais partidos, de todo o espectro político.
A marcha acontece justamente nos domínios de um dos principais idealizadores dessa frente única de oposição, o prefeito de Budapeste, Gergely Karácsony, 46. As siglas anti-Orbán ainda não escolheram seu candidato, mas o jovem político ambientalista é apontado como um dos favoritos.
É também por causa da eleição que o atual primeiro-ministro começou a elevar a retórica anti-LGBT —segundo analistas húngaros, dentro da usual tática populista de criar um inimigo comum e se apresentar como o homem forte capaz de combatê-lo.
O principal alvo de Orbán na década passada eram os imigrantes, mas o premiê voltou sua bateria contra minorias não heterossexuais depois que a crise dos refugiados arrefeceu. No caso da lei aprovada em junho, ativistas de direitos humanos dizem que, além de prejudicar a educação e a cultura, o governo criou uma falsa associação entre homossexualidade e pedofilia.
“Esta lei húngara é uma vergonha”, afirmou a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, no fim de junho.
Na última semana, a Comissão deu início a uma ação legal contra a medida, alvo de protestos tanto da UE como de progressistas húngaros. Uma das consequências do processo pode ser a suspensão do repasse de fundos ao país, mas a tramitação costuma levar vários anos.
Equanto isso, o premiê dobrou a aposta contra seus críticos, anunciando que fará um referendo sobre o texto aprovado no Parlamento. Como em outras consultas já feitas pelo governo húngaro, o referendo inclui perguntas tendenciosas, segundo opositores.
Uma delas, por exemplo, questiona os eleitores sobre se “conteúdo que possa afetar a orientação sexual deveria ser mostrado a crianças sem restrições”.
Entenda o Caso
Quem é o primeiro-ministro da Hungria?
Viktor Orbán, 58, estudou inglês, direito e ciência política. Virou líder do partido Fidesz, em 1993, e o fez migrar de sua linha liberal para uma plataforma conservadora, nacionalista e populista.
Orbán foi primeiro-ministro pela primeira vez de 1998 a 2002. Voltou ao governo em 2010 e, com o controle do Parlamento, mudou leis eleitorais que facilitaram a seu partido obter mais assentos com menor número de votos. Foi reeleito em 2014 e 2018.
A plataforma política de Orbán sempre foi anti-LGBT?
Não. O político conservador segue a estratégia populista de criar inimigos contra os quais se apresenta como um líder de pulso firme capaz de defender a população.
Desde que voltou ao poder em 2010, já foram escolhidos como alvos principais os comunistas, os imigrantes, a União Europeia, os capitalistas judeus (especialmente o húngaro-americano George Soros) e, nos últimos três anos, os LGBT.
Segundo a historiadora Eva Balogh, Orbán não é pessoalmente homofóbico e essa não é uma questão ideológica do partido. “O alto escalão do Fidesz sabe há 30 anos que József Szájer, um dos amigos íntimos e aliados políticos de Orbán, é gay, mas sua orientação sexual não era problema em sua comunidade política”, escreve ela em seu blog Hungarian Spectrum.
Que direitos já foram retirados dos LGBT?
Alterações na Constituição lideradas por Orbán limitaram a definição de família, por exemplo, à formada por um homem e uma mulher, e determinaram que o gênero de uma pessoa deve ser o biológico.
Na prática isso impede que transexuais alterem seus nomes e, além de abolir direitos civis de casais do mesmo sexo, restringe fortemente a possibilidade de adoção por quem não estiver em casamento católico.
Como a lei antipedofilia afeta os direitos LGBT?
O Fidesz, partido controlado por Orbán, inseriu na lei uma seção que diz: “Para os fins desta lei e para garantir os direitos da criança, é proibido disponibilizar a menores de 18 anos pornografia ou representação da sexualidade para seus próprios fins, ou que implique qualquer desvio da identidade do sexo com o qual a pessoa nasceu, ou mudança de gênero e homossexualidade”.
Ou seja, cria uma identificação entre homossexualidade e pedofilia e impede a educação sexual e até mesmo a menção à homossexualidade nas escolas.
O que diz Orbán sobre essa lei?
Orbán e membros de seu governo têm dito que a intenção da lei é garantir que “a educação sexual dos filhos pertence exclusivamente aos pais”, embora o texto aprovado não faça nenhuma menção à palavra pai.
“Ativistas LGBTQ visitam creches e escolas na UE e ministram aulas de educação sexual. Eles querem fazer isso também aqui na Hungria”, afirmou o premiê no final de julho, ao prometer um referendo sobre a legislação.
Por que Orbán agora ataca os LGBT?
Oposicionistas o acusam de tentar tirar a atenção da onda de críticas que ganhou as ruas após a tentativa do governo de construir em Budapeste um campus da Universidade Fudan, na China.
Para alguns analistas, o ataque aos LGBT é uma estratégia política oportunista, que encontra eco no eleitorado mais conservador do interior do país. A historiadora Eva Balogh vê “um cálculo político frio, ditado pela ameaça da oposição unida, que pode derrubar o partido de Orbán em abril de 2022”.
Qual a reação da União Europeia?
O comissário responsável por Justiça, Didier Reynders, e o comissário para mercado interno, Thierry Breton, deram o primeiro passo para uma ação legal contra a Hungria:
nviaram uma carta à ministra da Justiça húngara, Judit Varga, pedindo esclarecimentos. Ela tem prazo até o final deste mês.
Líderes da maioria do smembros do bloco assinaram uma carta pedindo que a Comissão Europeia (Poder Executivo da UE) reagisse contra a lei, que, segundo eles, “representa uma forma flagrante de discriminação com base na orientação sexual, identidade e expressão de gênero e portanto, merece ser condenada”.
A Hungria pode ser obrigada a rever a lei?
Não diretamente, mas há três caminhos para tentar pressioná-la.
1) O primeiro é o da Justiça. Após a resposta da ministra húngara ao questionamento feito nesta semana, a Comissão pode iniciar um processo por infração, obrigando a Hungria a alterar a lei.
Caso a Hungria se recuse, o caso irá para o Tribunal de Justiça Europeu. Se a decisão final for a de que a lei húngara fere o direito europeu, o governo da Hungria pode ser punido, mas esse processo pode durar anos.
2) Outro caminho de pressão é um procedimento disciplinar conhecido como artigo 7º, que a Comissão Europeia aplica quando considera que um de seus membros pode estar violando valores essenciais da UE. No limite, os procedimentos do artigo 7º podem levar à suspensão de direito de voto de um país no Conselho Europeu, órgão que reúne os governos dos 27 membros.
Para isso, no entanto, é necessária aprovação unânime dos outros 26 membros, algo improvável porque a Polônia, também sob investigação, apoia o governo de Orbán.
3) Um novo instrumento, fruto de um acordo não muito enfático firmado no ano passado, é tentar vincular o repasse dos recursos bilionários de reconstrução pós-pandemia ao respeito aos valores da UE e ao Estado de Direito.
Como o texto não estabelece firmemente essa barreira, aplicá-la dependeria de força política da Comissão e diplomacia. Não é pouco o que está em jogo: a Hungria pleiteia receber 50 bilhões de euros (R$ 296 bi), certa de um terço de seu PIB anual.
Por Ana Estela de Sousa Pinto