Novos ataques na Ucrânia fazem explodir guerra de versões na crise europeia
Novos ataques na Ucrânia fazem explodir guerra de versões na crise europeia
A guerra de versões sobre a situação militar em torno da Ucrânia explodiu, literalmente, com uma série de ataques com morteiros registrada na frente de batalha entre rebeldes pró-Rússia no leste do país e forças de Kiev.
De um lado, os separatistas que desde 2014 dominam duas porções do país dizem que foram atacados pelo governo ucraniano. Do outro, Kiev afirma que foi alvo das bombas e que isso pode ser um pretexto criado para a Rússia iniciar uma ação militar na região.
Ambos os lados podem estar mentindo, como tem sido a praxe nesse conflito, mas, se a situação escalar, a alta tensão registrada no Ocidente com o alegado risco de invasão russa atingirá um novo nível. Até aqui, não houve mortes registradas.
“A situação na linha de contato escalou dramaticamente. O inimigo está tentando lançar hostilidades”, disse no seu canal do Telegram a autoproclamada República Popular de Donetsk, uma das duas áreas separatistas –a outra fica em torno da outra cidade-chave da região, Lugansk.
Kiev, por sua vez, diz que houve um ataque com morteiro contra uma escola em Stanitsia, ferindo dois professores. Esse tipo de escaramuça sempre ocorreu desde que um cessar-fogo em 2015 tentou controlar a guerra civil iniciada no ano anterior, na esteira da anexação russa da Crimeia.
Mas o chanceler ucraniano, Dmitro Kuleba, já apontou o dedo para Moscou, dizendo que os russos estão por trás da violação do cessar-fogo.
O problema é o seu “timing”. A tensão entre Moscou e o Ocidente está nos níveis mais altos desde a Guerra Fria desde que o presidente Vladimir Putin mobilizou dezenas de milhares de soldados para treinamentos constantes em quatro frentes em torno da Ucrânia, a partir de novembro.
Nesta semana, Putin anunciou o início de uma retirada parcial de tropas, sinalizando ao Ocidente vontade de negociar numa posição de força. Ele havia usado a crise ucraniana para tentar estabelecer o status de segurança em todo o Leste Europeu, lançando demandas para o fim da expansão da Otan (aliança militar ocidental), entre outros pontos.
Isso implica impedir a Ucrânia e outros países, como Geórgia e Moldova, de aderir ao clube e também à União Europeia, na prática, evitando assim a existência de regimes pró-Ocidente capazes de inspirar a oposição em seu país. Os EUA e aliados não topam.
Nesta quinta (17), o Ministério da Defesa russo divulgou mais vídeos e informações de retirada de equipamento militar da Crimeia e de regiões próximas ao leste ucraniano. Só que o Ocidente diz que isso é uma farsa.
Na véspera, a Otan havia dito que não tinha confirmação de redução substancial de forças. Já na quinta no Leste Europeu, os EUA afirmaram que, além de não retirar, Putin enviou ao menos 7.000 soldados a mais, chegando ao nível de 150 mil homens em prontidão. Suas Forças Armadas têm cerca de 900 mil militares.
Em Moscou, o Ministério das Relações Exteriores repeliu a desconfiança. “O que o senhor [Jens] Stoltenberg tiver a dizer não nos interessa mais”, afirmou a porta-voz Maria Zakaharova sobre o secretário-geral da aliança militar.
É nesse contexto de acusações cruzadas que a renovada atividade na chamada linha de contato, uma fronteira informal de 430 km que separa as duas “república populares” do território ucraniano. Já morreram no conflito mais de 14 mil pessoas.
Países da Otan e a Ucrânia têm repetido o temor de que Putin lance uma operação de “bandeira falsa”, ou seja, monte um ataque contra suas próprias forças para justificar uma invasão. Ocorre que, tecnicamente, os rebeldes pró-Rússia não são aliados formais de Moscou.
Aí entra a nova carta inserida pelo russo no conflito, o pedido de reconhecimento das duas áreas feito de modo combinado com a Duma, a Câmara dos Deputados local. Se fizer isso, Putin poderá socorrer um novo aliado, a pedidos, por assim dizer.
Essa é a acusação ucraniana e ocidental. Mas há um óbice importante: se fizer isso e quiser continuar no jogo de provocação controlada do Ocidente, Putin perderá um ativo importante, que é a posição de fiador dos chamados Acordos de Minsk.
Assinados em 2014 e 2015, eles seguram o precário cessar-fogo no Donbass (leste ucraniano), e estabelecem um vago mapa para a acomodação do país, garantindo autonomia para os rebeldes, na prática federalizando a Ucrânia.
Para Putin, tecnicamente isso resolveria seu problema de ver o vizinho na Otan, pois os separatistas teriam voz e não permitiram a adesão ao clube militar. Ao mesmo tempo, tudo viraria um problema para Kiev resolver.
Se reconhecer as repúblicas e, pior, colocar tropas russas em massa nelas, deixará de ser um juiz do processo. Isso uma semana depois de obter o apoio da França, que considera Minsk a base de qualquer negociação.
Há outras questões. Os rebeldes querem a totalidade das antigas províncias de Lugansk e Donetsk para si –hoje ocupam algo como metade delas. Putin ajudaria a violar território ucraniano de fato, ao fim absorvendo as áreas como fez com a Crimeia?
Georgi Tchijov, do Centro de Reforma e Assistência de Kiev, diz por mensagem que não faria sentido político, até pelo contexto diferente: há oito anos, Putin respondeu instintivamente à derrubada do governo aliado em Kiev para brecar a ocidentalização do país. Agora, tem a iniciativa.
Mais que isso, ele aponta para o fato de que o custo de uma reconstrução, estimado pelo seu centro em US$ 22 bilhões, é impagável para a Rússia. A anexação da Crimeia custou estimados US$ 5 bilhões e é uma dor de cabeça econômica até hoje para o Kremlin.
Outro fator que pesa é a opinião pública. Ao longo dos anos, as sondagens do Centro Levada, o instituto independente mais respeitado da Rússia, indicam que apenas um quarto dos russos concorda com a ideia de trazer os separatistas para a pátria-mãe. E se Putin é sensível a algo, é a pesquisas.
Enquanto isso, o Ministério das Relações Exteriores em Moscou disse que dará uma resposta às propostas americanas acerca de segurança, basicamente controle de mísseis e monitoramento de exercícios militares, ainda nesta quinta.
Mas o chanceler Serguei Lavrov afirmou, mantendo a tática de morde-e-assopra, que a Rússia não tem mais o que fazer à mesa com o fórum de membros da Otan, que no começo de janeiro serviu para discussões sobre a crise. Ao mesmo tempo, voltou a dizer que os ameaçadores exercícios com a ditadura de Belarus acabarão dia 20, como previsto.
Longe dali, na Venezuela, o ditador Nicolás Maduro afirmou na quarta que pretende expandir sua cooperação militar com Moscou.
“Rússia é apoiada pela Venezuela ante as ameaças da Otan e do mundo ocidental”, afirmou, segundo a emissora Venezolana de Televisión.
No mês passado, a Rússia admitiu que poderia posicionar forças na Venezuela ou em Cuba, outro aliado no quintal dos Estados Unidos, como forma de compensar estrategicamente a situação na Ucrânia. De difícil execução, a ideia foi vista como parte do jogo de ameaças de lado a lado na crise.
Por Igor Gielow