Medo de ataques antecipa fim de retirada do Afeganistão, e civis se desesperam
Os voos recomeçaram na madrugada desta sexta-feira (27/8)
Um dia depois do atentado que matou mais de 100 pessoas junto ao aeroporto de Cabul, a maioria dos países que participavam da retirada finalizou suas operações. O desespero toma conta de quem ficou para trás.
“O Canadá acabou de avisar que quem está por lá está à própria sorte”, disse um afegão numa mensagem enviada a uma rede de ativistas que tenta evacuar civis a partir do Barhein, repassada à reportagem.
Não só o Canadá. O Reino Unido, segundo mais ativo país na operação depois dos Estados Unidos, informou que encerra a retirada nesta sexta (27/8), cinco dias antes do prazo final anunciado pelo presidente americano, Joe Biden. Outras nações, como Alemanha, Nova Zelândia, França, Suécia e Espanha já voaram seus últimos aviões.
Os voos recomeçaram na madrugada desta sexta, horas depois de EI-K (Estado Islâmico Khorasan), sucursal afegã do famoso grupo terrorista que é rival do Talibã, ter explodido duas bombas junto às multidões que tentavam chegar ao aeroporto. Morreram ao menos 108 pessoas, 13 delas militares americanos.
Elas tentavam fugir de outros extremistas, o Talibã, que retomou o poder no Afeganistão no dia 15 passado, 20 anos depois de ser derrubado pelos Estados Unidos por ter protegido os terroristas que praticaram os atentados do 11 de Setembro.
Antes das explosões, 12.500 pessoas haviam sido retiradas da capital afegã, elevando para cerca de 105 mil o número de evacuados desde que o Talibã chegou às portas da cidade de 4,45 milhões de habitantes, na noite do dia 14.
Ao fim, provavelmente apenas americanos, que já começaram a retirar parte dos 6.000 militares enviados para a evacuação, deverão operar voos até a próxima terça-feira. O Departamento de Estado estima em cerca de mil o número de cidadãos do país que deverão ficar no Afeganistão, a maioria por laços familiares.
A entrada do EI-K na equação de segurança de Cabul, cidade que é policiada por uma rede terrorista ligada ao Talibã, a Haqqani, mostra que o atoleiro deixado para trás pelas forças ocidentais tende a ser encharcado de sangue.
“Por favor, liguem no aeroporto, nos ajudem. Os terroristas vão chegar aqui em casa”, afirmou um outro afegão em mensagem de texto. Se essa era uma mensagem padrão de quem temia buscas do Talibã por ter trabalhado com ocidentais, agora o drama é ampliado. Os ativistas nada podem fazer.
A noite de quinta para sexta foi tensa. Uma outra mensagem afirma que houve ao menos seis explosões ouvidas em bairros da capital, algo que não pôde ser aferido. Muitos seguem trancados em casa, saindo apenas para compras essenciais numa economia que vive um surto inflacionário, e mulheres que se aventuram geralmente se escondem sob burcas.
A vestimenta tradicional pashtun, etnia dos talibãs, virou símbolo de seu bárbaro governo de 1996 a 2001, quando o uso era obrigatório e as mulheres, consideradas seres inferiores, sem acesso regular a educação ou saúde públicas.
Os relatos disponíveis mostram que ainda há um fluxo de pessoas que driblam os bloqueios do Talibã e se arriscam junto aos portões do aeroporto. Mas a maioria nem tem um passaporte, que custa cerca de US$ 90 (R$ 475) na capital –um valor proibitivo, mesmo que houvesse algum governo emitindo o documento.
A dúvida que fica agora é se a violência introduzida com o EI-K será útil para o Talibã consolidar sua posição ou a desafiará. O grupo rival nunca teve musculatura ou o intento de tomar o poder, mas pode desestabilizar os fundamentalistas islâmicos na largada de seu governo.
Há alguns sinais de que os talibãs poderão contar com ajuda externa, contudo. O governo turco aceitou o convite do grupo para conversar sobre a administração do aeroporto após a saída americana.
Inicialmente, quando Biden anunciou a retirada em abril, Ancara se dispôs a manter tropas no local. Como membro da Otan (aliança militar ocidental), contudo, o país se viu como alvo e decidiu nesta semana retirar suas forças remanescentes.
Um eventual acordo com os talibãs talvez não envolva militares armados, embora a Turquia não seja vista como um ator ocidental no país. Há diversos laços étnicos com as comunidades turcomanas no país, como os uzbeques, que também têm ligação com o Irã por meio da língua comum.
Já a China, que desde antes da chegada do Talibã ao poder já havia dado apoio ao grupo em troca do fim de laços dele com terroristas que agem em suas áreas muçulmanas, afirmou nesta sexta que apenas a ajuda internacional manterá a ordem no país.
Para Pequim, a estabilidade é essencial em sua fronteira sudoeste, além das oportunidade de negócios eventuais que possam advir: estima-se que o Afeganistão tenha uma grande quantidade de terras-raras, elementos essenciais para a fabricação de chips e outros componentes vitais ao mundo moderno.
Na Rússia, o Kremlin foi em linha semelhante, condenando o atentado duplo, mas de forma mais condizente com suas próprias preocupações de segurança. O país de Vladimir Putin não quer ver infiltração radical nos seus aliados da Ásia Central, que servem de tampão estratégico na sua fronteira.
Para tanto, os russos anunciaram que vão ajudar a reforçar as Forças Armadas de países como Tadjiquistão, seu principal vassalo na região, e Uzbequistão. Armas leves e helicópteros, equipamento adequado para lidar com insurgências, estão num pacote de negociação.
Essa renovada corrida armamentista regional já viu inclusive aviões de ataque leve Super Tucano serem vendidos para o Turcomenistão. O modelo era operado pelo Afeganistão contra o Talibã, e pilotos levaram a maior parte da frota para o Uzbequistão quando a queda do país se tornou irreversível.
Por fim, na reviravolta política mais desconcertante, Biden precisará dar uma resposta pública aos ataques, e já prometeu “caçar” os terroristas.
Para fazê-lo de forma eficaz, em tese precisará contar com cooperação do Talibã. Como irá explicar isso para seu público doméstico após a mais longa guerra americana, essa é outra história.
Por Igor Gielow