Lei nos EUA incentiva processo judicial contra clínicas de aborto
FolhaPress

Lei nos EUA incentiva processo judicial contra clínicas de aborto

Organizações pró-aborto já entraram na Justiça para tentar derrubar a lei texana

Foto: Reprodução/ TV Brasil

Encorajados por um Judiciário cada vez mais conservador, estados americanos aprovaram um número recorde de medidas antiaborto neste ano. Segundo o Instituto Guttmacher, especializado em direito reprodutivo, foram 90 restrições já no primeiro semestre, superando o total de 2011.

Uma medida, em especial, tem chamado a atenção no país: o apelidado Ato da Batida do Coração, que vai entrar em vigor em setembro no Texas. Segundo essa controversa lei estadual, qualquer pessoa poderá processar uma clínica por realizar um aborto depois que as batidas do coração do feto forem detectadas. Isso acontece em torno da sexta semana de gestação.

Essa pessoa –que nem precisa morar no Texas ou ter qualquer relação com a grávida– pode também processar quem tiver auxiliado o aborto, algo sem precedente no país. O texto é vago, mas ativistas acreditam que a lei dá margem, por exemplo, para penalizar uma pessoa por levar a mulher de carro à clínica de aborto, ajudar a pagar o custo do procedimento ou mesmo aconselhá-la.

“É uma anomalia que subverte todo o nosso sistema jurídico”, afirma Sonia Suter, professora da Universidade George Washington especializada em lei e medicina. Pessoas vão à Justiça quando são prejudicadas, explica. “Mas qual é o seu prejuízo se uma pessoa abortou no Texas?”

O Ato da Batida do Coração vai ainda mais longe, porque premia as pessoas por vigiarem umas às outras. Quem denunciar uma clínica por realizar um aborto após a sexta semana de gestação –período em que mulheres costumam nem saber que estão grávidas, aliás– pode receber no mínimo US$ 10 mil (hoje, o equivalente a mais de R$ 50 mil) de indenização, se o caso for bem sucedido.

Organizações pró-aborto já entraram na Justiça para tentar derrubar a lei texana. Enquanto isso, se preparam para a entrada em vigor do texto no início de setembro.

“Vai ser muito difícil”, diz Andrea Ferrigno. Ela é vice-presidente da Whole Woman’s Health, que gerencia clínicas de saúde para mulheres no Texas. “A necessidade de abortar não desaparece quando você fecha uma clínica”, diz. Uma pequena parte das mulheres pode inclusive decidir viajar para outros estados para interromper a gravidez, arcando com a ansiedade e os custos da viagem.

Quando setembro chegar, no entanto, ativistas podem ter uma preocupação ainda maior: a Suprema Corte estará prestes a analisar o marco legal que permite o aborto nos Estados Unidos.

No final do ano, a corte deve tomar uma decisão sobre uma medida antiaborto no estado do Mississippi. A questão em consulta é se uma autoridade estadual pode proibir abortos antes que o feto seja capaz de sobreviver fora do ventre da mãe –momento conhecido como viabilidade, no jargão, algo em torno de 24 semanas. Pode mudar a regra do jogo.

Isso porque hoje o entendimento nos Estados Unidos é de que o governo tem o dever de proteger o direito ao aborto antes da viabilidade. Isso foi decidido em 1973, em um caso conhecido como Roe v. Wade, o marco dos direitos reprodutivos no país. Se a Suprema Corte decidir que o Mississippi pode proibir abortos antes desse prazo, basicamente estará dizendo que mudou de ideia depois de cinco décadas.

E tantos estados estão promulgando medidas antiaborto justamente porque acreditam que a Suprema Corte mudou de ideia. Com a morte da juíza Ruth Bader Ginsburg e a nomeação de Amy Coney Barrett, a corte recentemente reforçou sua maioria conservadora.

“O próprio fato de que os juízes decidiram aceitar o caso indica que ao menos quatro dos nove membros da corte estão abertos a ouvir”, diz a professora Suter. O juiz Clarence Thomas já se posicionou abertamente contra Roe v. Wade.

Mas há um descompasso entre Judiciário e população. Uma pesquisa da Associated Press aponta que 57% dos americanos creem que o aborto deveria ser legal. Foram ouvidos 1.125 adultos de 10 a 14 de junho deste ano. “A Suprema Corte não reflete a maioria”, diz Suter.

“Agora que a Suprema Corte tem uma composição sólida antiaborto, estamos testemunhando esforços para rever esses direitos”, afirma Elizabeth Nash, analista de política estadual no Guttmacher.

Estados no sul e no centro do país se sentem encorajados e, por essa razão, estão adotando mais medidas restritivas. É o que explica, diz, o fato de o Ato da Batida do Coração ter sido aprovado no Texas. “Há dez anos, se você lesse o texto dessa lei, pensaria que ela nunca passaria pelos legisladores. Mas passou.”