Insatisfação contra democracia é desafio do nosso tempo, diz Biden em abertura de cúpula – Mais Brasília
FolhaPress

Insatisfação contra democracia é desafio do nosso tempo, diz Biden em abertura de cúpula

A primeira cúpula da democracia reúne líderes de cerca de 110 países

Joe Biden
Foto: Reprodução

As dificuldades enfrentadas pela democracia atualmente são o desafio definidor do nosso tempo, disse Joe Biden, presidente dos EUA, ao dar início nesta quinta (9) a um evento organizado pelo governo americano para tentar buscar novas formas de garantir participação popular na política.

A primeira Cúpula da Democracia, que se encerra na sexta (10), reúne líderes de cerca de 110 países, incluindo governantes acusados de agir diversas vezes de modo antidemocrático, como o premiê indiano, Narendra Modi, e os presidentes de Filipinas, Rodrigo Duterte, Polônia, Andrzej Duda, e Brasil, Jair Bolsonaro (PL).

Nos últimos anos, eles protagonizaram ações para cercear opositores, enfraquecer o Judiciário, questionar sistemas eleitorais e atacar a imprensa. Por outro lado, o governo americano vetou a participação de governantes de países como Bolívia, China, Hungria e Rússia.

Em sua fala, Biden citou autocratas que tentam ampliar seu poder à força e apontou o aumento da polarização política. “Estamos muito preocupados com toda a crescente insatisfação das pessoas pelo mundo com governos democráticos. Elas sentem que [os líderes] estão falhando em atender suas necessidades. Na minha visão, este é o desafio definidor do nosso tempo”, disse o democrata.
O líder americano estava em uma mesa, em frente a um telão que reunia, por meio de videochamadas, os líderes estrangeiros convidados. ​Bolsonaro era um dos espectadores.

“A democracia precisa de defensores. Quis organizar esta cúpula aqui nos EUA porque sabemos que renovar nossa democracia e fortalecer nossas instituições requer esforço constante. A democracia na América está em uma luta contínua para manter nossos ideais elevados e curar nossas divisões”, disse Biden. “A democracia não acontece por acidente. Precisamos renová-la a cada geração. A Freedom House relata que 2020 foi o 15º ano em que houve recuo na liberdade global”, disse Biden.
Todo ano, a ONG Freedom House avalia a qualidade das democracias no mundo. Segundo a entidade, os EUA tiveram um declínio na liberdade entre 2010 e 2020, motivado por corrupção, conflitos de interesse e falta de transparência. O país saiu da nota 94 (de um máximo de 100) para 83. O Brasil é considerado um país livre, com nota 74.

Dois países barrados na cúpula, Bolívia e Hungria, tiveram nota mais alta (66 e 69, respectivamente) do que as Filipinas (56), que foi convidada. Já China (9) e Rússia (20) são consideradas como países não-livres pela entidade.
A China tem feito ataques ao evento: diz que os EUA o utilizam para impor seu poder sobre outros países e que não cabe aos americanos definir o que é ser democrático.

“O verdadeiro propósito da cúpula [para os EUA] é dividir o mundo em blocos sob o pretexto da democracia, a fim de cercear e explorar outros países e preservar sua hegemonia econômica, financeira, tecnológica e militar. Na sua essência, é um neocolonialismo disfarçado de democracia”, criticou Yang Wanming, embaixador da China no Brasil, em entrevista à reportagem.

Biden tem reconhecido que os Estados Unidos também enfrentam desafios com a democracia em seu território e dito que os americanos buscam criar um encontro de troca de experiências entre vários países, sem imposições. “Democracias não são todas iguais. Não concordamos em tudo nesta reunião hoje. Mas as escolhas que fizermos juntos vão definir o curso de nosso futuro compartilhado para as próximas gerações”, afirmou o presidente americano.

A ideia do encontro é que os governos apresentem compromissos voluntários, que serão cobrados depois. Como na Cúpula do Clima, realizada em abril, os países deverão fazer um monitoramento conjunto dos avanços uns dos outros, sem que esteja claro quais seriam as punições em caso de retrocessos, o que gera dificuldades para fiscalizar o andamento.

Há também questionamentos sobre como criar métricas que possam dar conta de aferir os avanços e retrocessos de cada país. “Uma métrica fácil seria se propor a ajudar, digamos, mil ativistas de direitos humanos sob ameaça. Mas como mensurar um avanço da cultura antidemocrática que atinge determinado país? Os participantes terão de pensar bastante sobre criar parâmetros que sejam aceitos por todos”, comenta um representante da sociedade civil que ajuda na organização do evento.

Até agora, entre medidas práticas do encontro, o governo dos EUA anunciou um pacote de US$ 424 milhões para apoiar iniciativas em cinco áreas: apoiar a imprensa independente, combater a corrupção, reforçar reformas democráticas, adotar novas tecnologias e defender a realização de eleições. (Veja um resumo delas ao final do texto).
Em relação à liberdade de imprensa, que Biden chamou de “pedra fundamental da democracia”, serão fornecidos US$ 30 milhões para um fundo internacional, destinado a ajudar mídias independentes a se manterem, nos EUA e no exterior. E outro fundo, com investimento inicial de US$ 9 milhões, será destinado a proteger jornalistas alvo de ameaças ou processos por fazerem seu trabalho. A ideia é que outros países também coloquem dinheiro nas duas iniciativas.

O Departamento de Estado dos EUA anunciou a criação de uma Coordenação Anti-Corrupção Global, para integrar e ampliar ações e colocar em prática estratégias para dificultar a circulação de dinheiro público roubado pelo mundo.
O governo americano anunciou também novas sanções contra autoridades estrangeiras acusadas de enriquecimento ilícito. A lista inclui Carlos Bermeo Casas, ex-procurador colombiano acusado de receber propina para ajudar narcotraficantes, Nestor Moncada Lau, conselheiro do regime de Daniel Ortega na Nicarágua, Martha Berthal, chefe de gabinete em El Salvador, e Isabel dos Santos, filha de um ex-presidente de Angola e acusada de desviar milhões.

Novos anúncios de programas devem ser feitos ao longo do evento, e o governo americano espera que outros países também divulguem novos projetos ou se juntem aos atuais.
Após a fala de abertura de Biden, teve início uma reunião virtual de duas horas entre os líderes dos países, a portas fechadas. A primeira hora foi comandada pelo presidente americano, e a segunda, por Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, o braço executivo da União Europeia.
Depois, houve debates abertos ao público sobre como reforçar a democracia, recuperar instituições após a pandemia e combater a corrupção. As discussões têm participação de governantes, especialistas e representantes da sociedade.

Na sexta, as atividades começam às 8h, com discurso de António Guterres, secretário-geral da ONU. Em seguida, haverá discussões sobre proteção aos direitos humanos, combate ao autoritarismo e uso da tecnologia. Às 15h30, Biden fará a fala de encerramento da cúpula.
Apenas uma brasileira foi chamada para participar dos debates públicos oficiais do encontro. Na quarta (8), a ativista Patricia Zanella esteve em uma sessão sobre como ampliar a participação feminina na política.
Ao longo dos dois dias, são exibidos, via internet, vídeos gravados com discursos dos líderes mundiais, nos quais eles devem dizer seus compromissos para reforçar a democracia. O vídeo de Bolsonaro deve ser exibido na sexta.

Em nota divulgada nesta quinta (9), o Itamaraty disse que, no vídeo, “Bolsonaro reitera o compromisso do Brasil com a proteção das liberdades fundamentais e a promoção de uma cultura de diálogo, liberdade e inclusão social, sem discriminação”.
O ministério acrescenta que o presidente também mencionou o combate à corrupção, “inclusive por meio da aprovação do Plano Anticorrupção, com vistas à consolidação de uma administração pública transparente e responsável”.

No documento que formalizou os compromissos do Brasil, enviado aos organizadores da cúpula antes do evento, o governo brasileiro acusa a mídia profissional de desinformação e pede liberdade de expressão para vozes de diferentes ideologias. Bolsonaro afirma frequentemente que vozes conservadoras têm sido perseguidas e censuradas por plataformas de internet e pelo Supremo Tribunal Federal.
As apresentações da cúpula podem ser vistas no site do evento, que oferece tradução em português.

RESUMO DAS MEDIDAS ANUNCIADAS PELO GOVERNO DOS EUA

1. Apoiar a imprensa independente
– Criação do Fundo Internacional para a Mídia de Interesse Público, voltado para ajudar meios de comunicação a se manterem. Aporte inicial será de US$ 30 milhões
– Criação do Fundo de Defesa contra a Difamação para Jornalistas, para ajudar profissionais a se defenderem de ataques físicos, virtuais e de ações na Justiça. Aporte inicial de US$ 9 milhões, e de mais US$ 3,5 milhões para criar uma Plataforma de Proteção ao Jornalismo.
2. Combater a corrupção
– Formação de um Consórcio Global Anti-Corrupção, com participação do Departamento de Estado e verba inicial de US$ 6 milhões, com objetivo de conectar e apoiar jornalistas e entidades civis que fiscalizam gastos públicos.
– US$ 5 milhões em um programa de proteção para delatores, ativistas, jornalistas e outros agentes anti-corrupção em risco.
– Mudanças para ampliar a transparência de negócios nos EUA, como a compra de imóveis em dinheiro vivo, de modo a dificultar lavagem de recursos.
– Criação de programas de parcerias com empresas e ONGs para criar novos mecanismos de fiscalização.
3. Ampliar participação democrática
– US$ 33,5 milhões em uma iniciativa para ampliar a presença de mulheres na política. Haverá também um fundo de US$ 5 milhões para a inclusão e empoderamento de pessoas LGBTQIA+.
– US$ 10 milhões para apoiar entidades civis e de direitos humanos em risco
– US$ 122 milhões para ajudar trabalhadores pelo mundo a reivindicarem seus direitos
4. Avançar em tecnologias
– Defender o modelo de internet aberta, segura e estável e expandir iniciativas digitais de promoção de valores democráticos.
– Medidas para impedir o uso da internet para desrespeitar direitos humanos. Haverá US$ 4 milhões para um fundo destinado ao combate da censura.
5. Defender eleições livres
– US$ 2,5 milhões para uma Coalizão para Assegurar Integridade Eleitoral, que unirá governos e ONGs.
– US$ 17,5 milhões para um Fundo de Defesa de Eleições Democráticas, para buscar soluções de combate à tentativas de desacreditar votações.

Por Rafael Balago