‘Estamos confinados por Israel e até nossos telefones foram hackeados’, diz brasileira na Cisjordânia
Em depoimento à coluna, H.F. relata cotidiano de humilhações no território palestino, diz que escuta os aviões com bombas rumo a Gaza e diz que sentimentos de indignação e revolta fortalecem o Hamas
Os palestinos brasileiros que estão na Cisjordânia, embora longe da Faixa de Gaza, foram afetados diretamente pela guerra de Israel com o Hamas.
Desde que ela explodiu, eles não podem mais sair de suas cidades por determinação do Estado judeu, que bloqueou todas as saídas de todas as localidades do território.
Em tempos de paz, os palestinos da Cisjordânia só conseguem se locomover entre as cidades passando por check points nas estradas, pontos de controle onde são revistados e têm que dar entrevistas sob a mira de armas.
Mas pelo menos os palestinos conseguiam passar por essas barreiras. Agora, nem isso.
Confinados em espaço determinado pelo Estado judeu, eles escutam diuturnamente o barulho infernal de aviões de guerra israelenses passando sobre suas casas e transportando bombas que serão despejadas a poucos quilômetros dali, na Faixa de Gaza —onde têm amigos e, muitas vezes, familiares.
Ao contrário dos brasileiros que estavam em Israel, no entanto, os da Cisjordânia evitam agora dar entrevistas, pois temem sofrer uma perseguição implacável do Estado judeu, ao qual estão submetidos.
Alguns que se atreveram a falar tiveram seus celulares bloqueados —o fato já foi relatado à diplomacia brasileira, que pouco pode fazer.
Depois de muita insistência, a coluna conseguiu conversar com uma brasileira palestina que vive na cidade de Ramallah, na Cisjordânia, há quase 30 anos.
H.F. (ela será identificada pelas iniciais, por questões de segurança) tem pouco mais de 50 anos e filhos que nasceram no território palestino.
A primeira resposta dela à solicitação de entrevista foi a seguinte: “Boa tarde , eu lhe peço desculpas , mas não estou dando nenhum tipo de entrevistas no momento. Lamento, mas a situação está muito crítica e tensa nos territórios palestinos”.
E seguiu: “Todos nós estávamos dando entrevistas para toda a imprensa internacional até que nossos celulares infelizmente começaram a ser hackeados sem poder utilizá-los novamente. Essa é a realidade nossa aqui”.
H.F. só concordou em dar o seu depoimento depois de ter garantida a preservação de sua identidade. “Posso ser perseguida”, diz ela. “Estamos confinados. É uma punição coletiva, como se merecêssemos um castigo”, diz ela.
SOBRE A CABEÇA OS AVIÕES
Esses conflitos [entre israelenses e palestinos] existem há mais de 70 anos, e eu já passei por vários deles. Mas jamais vi uma onda de violência como a desta guerra que foi declarada no dia 7 de outubro.
A gente escuta o barulho dos F-16, os aviões de guerra mais avançados do mundo, que vão para Gaza matar mulheres, crianças, idosos.
São eles que estão morrendo, e não as lideranças do Hamas. Não poupam casas, hospitais, escolas. Nada, nada.
Famílias inteiras são exterminadas, não têm mais registro civil, não têm mais ninguém que vai carregar esse sobrenome adiante. Já são 50 famílias em que morreram pais, filhos, avós, tios, todo mundo. Não sobrou nada.
E o mundo vê esse terror em silêncio, como se fosse um filme no cinema em que depois você volta para casa para dormir.
Ficamos indignados, frustrados, revoltados com tantas mortes de inocentes.
E o mundo vê tudo isso em silêncio. Eles [moradores de Gaza] já não se preocupam mais com quem está com eles e quem não está. Eles só querem viver.
COTIDIANO
Só vindo à Cisjordânia, a Gaza, só vendo com os próprios olhos para entender a causa Palestina.
Eu moro em Ramallah, e trabalho em uma organização que atua em diferentes cidades.
Há check points [pontos de controle] na Cisjordânia toda.
Até mesmo para visitar parentes no vilarejo de Koformalek, terra natal dos meus pais, a 15 minutos de Ramallah, eu tenho que passar por eles.
Se estão abertos, você passa numa boa. Mas muitas vezes estão fechados com portões de ferro ou blocos de cimento.
Para passar, precisa dar entrevista, explicar para onde vai e o que vai fazer. E eles podem simplesmente impedir que você siga a viagem. Sem explicação alguma, alegando apenas questões de segurança. É humilhante.
ATALHO
É possível viajar por caminhos clandestinos. Mas você corre o risco de ser atacado pelos colonos judeus que estão nos assentamentos.
Quando falamos assentamentos, as pessoas imaginam barracas, alguma construção. Não. São cidades inteiras construídas em terras confiscadas dos palestinos.
Eles se apoderam do seu terreno sem a sua permissão. E têm o apoio de Israel.
Foram distribuídas armas para todos os colonos, sob o pretexto de que precisam se defender. Eles entram nas cidades, queimam cidades, carros, casas com as pessoas dentro. Isso já foi mostrado pela imprensa internacional.
NA GUERRA
Depois da guerra, Ramallah e todas as outras cidades ao redor dela estão bloqueadas. Ninguém entra, ninguém sai. A gente não pode se deslocar, de forma alguma.
Pessoas de outras cidades que trabalham aqui não podem entrar. A vida está paralisada. É isto o que acontece neste momento na Cisjordânia.
HAMAS
Os combatentes não estão morrendo, mas sim os civis. E, mesmo que Israel consiga eliminar alguns deles, outros vão surgir.
Em 2014 [quando Israel lançou uma campanha militar contra Gaza], diversos foram mortos. Surgiu uma nova geração, dos descendentes deles.
É algo que passa de geração em geração. E que não vai terminar nunca. Não vai parar enquanto não houver paz.
Eles [israelenses] sempre vão se sentir ameaçados, pois estão errados. Não vão dormir tranquilos. A qualquer momento podem ser atacados, pois tomaram as terras dos outros.
BANDEIRA BRANCA
Só haverá paz quando Israel cumprir a primeira resolução da ONU, de 1948, que determinou a divisão da Palestina em dois Estados.
Países árabes não aceitaram? É verdade. E tinham o direito de não aceitar. Como você se sentiria se entrassem no teu lar, te expulsassem, e você não tivesse mais direito a casa, a terras, a nada, nada?
Essa foi a diáspora palestina [depois da criação de Israel].
Pagamos uma conta que não era nossa. Os árabes nunca perseguiram os judeus. Viviam em harmonia com os judeus. Quem os perseguiu foram os europeus.
E mesmo depois de tudo isso, lideranças palestinas como Yasser Arafat estenderam as mãos, reconhecendo Israel e concordando com os dois Estados [um judeu e outro palestino].
Mesmo que saíssemos perdendo. E nada foi cumprido por Israel. Não respeitaram nada. E, ainda assim, o país não sofre sanções, não sofre retaliações.
É isso o que causa tanta indignação, revolta e frustração. É isso o que faz grupos como o Hamas crescerem. Ninguém vai conseguir controlar esses sentimentos.
A ILUSÃO
Meus pais migraram da Cisjordânia para o Brasil nos anos 1960, por causa das dificuldades de vida que existiam aqui.
Com 13 anos, eu vim para cá fazer uma visita. Gostei e pedi para ficar. Estudei por três anos em uma escola americana. Mas veio a primeira Intifada [movimento de insurreição palestino], e eles me pediram para voltar.
Morei no Brasil de novo, fiz faculdade, e pedi para voltar em 1994. Era a época dos Acordo de Paz de Oslo [assinado por Israel e pelas lideranças palestinas e que previa a criação de dois Estados].
Sonhamos então que seria possível a criação de um estado palestino livre e independente.
Muitos, muitos vieram para cá, para investir no Estado palestino. Mas foi uma ilusão. Os governos de direita de Israel, extremistas, racistas, fascistas, detonaram os acordos.
GAZA
O principal objetivo de Israel agora é fazer os palestinos saírem de Gaza, irem para o Egito. Israel quer esvaziar a região para se apoderar dela. Mas isso não vai acontecer.
Gaza já foi destruída e reconstruída mil vezes. O povo de Gaza é resistente, já enfrentou cinco ou seis guerras, eles não têm mais nada a perder.
Eu nunca fui para lá, pois Israel não permite esse deslocamento. Já pedi mil vezes, e nunca consegui. Eu queria conhecer com meus próprios olhos, ver o que é Gaza, conversar com as pessoas de lá.
VOLTA AO BRASIL
Eu só voltaria a morar no Brasil em caso de recrudescimento da guerra, e se ela chegar à Cisjordânia. Eu teria que pensar na segurança da minha família. Mas do contrário eu fico aqui, resistindo e na esperança de um dia reconquistarmos o nosso direito.
Eu já passei por conflitos em que Israel proibia até mesmo a circulação de ambulâncias nas ruas de Ramallah para a entrega de remédios.
Houve dias em que eu não tinha uma fatia de pão para comer em casa. E fiquei aqui. Eu não vou sair. Nós vamos resistir.