Entenda por que o Peru ainda não definiu seu presidente um mês após eleição
A novela continua apesar de o Onpe, órgão eleitoral do país, ter concluído a contagem dos votos, que apontou vitória do esquerdista Pedro Castillo
O Peru realizou em 6 de junho o segundo turno da eleição que decidirá o próximo presidente do país. Passados 30 dias, porém, o resultado oficial ainda não foi anunciado, e o futuro do país segue indefinido.
A novela continua apesar de o Onpe, órgão eleitoral do país, ter concluído a contagem dos votos, que apontou vitória do esquerdista Pedro Castillo. Segundo a apuração, ele terminou a disputa com 44 mil votos à frente da líder da direita radical Keiko Fujimori -num universo de mais de 20 milhões de eleitores.
Por isso, Castillo já tem atuado como presidente eleito, discutindo acordos e negociando a montagem de seu governo. O anúncio oficial de sua vitória ainda não aconteceu porque Keiko alega ter havido uma série de irregularidades no pleito e pediu na Justiça a impugnação de 802 atas de votação.
O Júri Nacional Eleitoral (JNE) já invalidou a maioria desses pedidos, principalmente por uma questão formal, já que eles foram apresentados depois do prazo. Assim, restam cerca de 30 reclamações da campanha da candidata que ainda estão sendo analisadas pelo órgão.
O JNE promete resolver a questão e anunciar o vencedor até o próximo dia 28 -quando o novo presidente deve tomar posse.
Um atraso no anúncio pode aumentar a incerteza política no Peru, já que o atual presidente, o interino Francisco Sagasti, não pode permanecer no cargo depois da data limite, marco do fim de seu mandato.
Caso o sucessor não esteja definido, quem deveria assumir a Presidência de maneira provisória, segundo a Constituição, é o chefe do Congresso. O problema é que a posição está vaga desde que o próprio Sagasti deixou o cargo para virar líder do país, após uma longa crise que derrubou os três presidentes anteriores.
Esse panorama exigiria que a Casa realizasse uma votação interna para escolher um novo chefe, que então assumiria a Presidência caso o vencedor da eleição não for definido dentro do prazo. “Trata-se de um cenário improvável e que traria mais instabilidade à situação em que estamos”, diz o cientista político Fernando Tuesta. “O JNE pode e deve entregar os resultados antes da data máxima, como já prometeu.”
Nesses 30 dias, aliados de Castillo e de Keiko pressionaram o tribunal, atrasando os trabalhos. Ambos os lados também têm protestado quase todas as noites em Lima, onde fica a sede do JNE.
Uma das consequências dessa pressão foi a renúncia de Luis Arce -homônimo do presidente da Bolívia, mas sem relação de parentesco- do JNE. Único juiz da corte a defender que Keiko tem o direito de apresentar as apelações fora do prazo, ele foi substituído por Víctor Raúl Rodríguez Monteza.
Em meio a esse cenário, o país ficou escandalizado com o ressurgimento de um dos personagens mais polêmicos da política peruana: Vladimiro Montesinos, ex-chefe do departamento de inteligência da ditadura de Alberto Fujimori (1990-2000), pai de Keiko.
Aos 76 anos, Montesinos está preso na penitenciária de Callao após ser condenado a 25 anos de prisão por corrupção e participação em uma série de massacres realizados pelo grupo paramilitar Colina, que atuava sob seu comando.
Devido a esses escândalos, muitos peruanos acreditavam que ele já era uma carta fora do baralho. Nas últimas semanas, porém, foram divulgados áudios nos quais Montesinos conversa, da prisão, com um militar aposentado sobre um possível suborno a juízes do JNE para garantir a vitória de Keiko. As acusações de interferência do ex-chefe da inteligência estão sendo investigadas pela Procuradoria do país e, ao menos por enquanto, nenhum dos juízes do tribunal foi afastado por envolvimento no caso.
Mesmo assim, a divulgação dos áudios serviu para mostrar à opinião pública peruana que o fujimorismo vem atuando nos bastidores para ajudar a eleger Keiko. Entre as conversas vazadas há ainda diálogos nos quais Montesinos debate estratégias políticas com Kenji, irmão da candidata.
Do outro lado, Castillo tem sinalizado que deixará o discurso mais radical de esquerda e pretende adotar, como presidente, tom mais moderado. Apesar de insistir na ideia de reformar a Constituição e instaurar um novo tribunal eleitoral, afirmou que respeitará a atual Carta, o Congresso e a propriedade privada.
Trata-se de uma posição bem mais amena que as apresentadas na campanha, durante a qual assustou as principais mineradoras instaladas no país. O Peru tem no cobre, no petróleo e em outros recursos naturais seus principais produtos de exportação, e os rumores de uma nacionalização nos moldes da promovida por Evo Morales na Bolívia alarmou empresas chinesas, americanas, espanholas e canadenses.
Em outro sinal para acalmar o mercado internacional, Castillo afirmou que pedirá a Julio Velarde, atual presidente do Banco Central, que continue no cargo, indicando continuidade na política macroeconômica. Nessa área, Castillo tem confiado o tema a Pedro Francke, assessor que defende um modelo para o Peru parecido ao da Frente Ampla, coalizão de esquerda que governou o Uruguai durante 15 anos.
“É possível que ele queira encontrar um meio termo entre estabilidade macroeconômica e justiça social, como no Uruguai, mas Ollanta Humala também tentou essa estratégia no Peru. Não funcionou”, diz o cientista político Steven Levitsky. “Porque Humala, assim como Castillo, só tem o domínio do Executivo e está débil diante de Judiciário e Legislativo. Será muito difícil quando faltam consensos e partidos fortes.”
Castillo já obteve, porém, o apoio de dois políticos: Veronika Mendoza, de esquerda, e Julio Guzmán, de centro, que podem ajudá-lo a montar seu gabinete, previsto para ser anunciado nos próximos dias.
Por outro lado, opositores do virtual eleito veem com preocupação a figura de Vladimir Cerrón, presidente do Perú Libre, partido de Castillo. Mais radical e líder de grupos de “ronderos” -grupo paramilitar com forte presença no interior e que segue uma agenda de esquerda mais datada, dos anos 1970-, ele viu uma acusação de corrupção cair na semana passada, o que o deixa livre para ocupar cargos públicos. Assim, pode liderar um dos ministérios, ainda que seu nome provoque grandes divisões até mesmo na esquerda.
Enquanto isso, Keiko apelou a Sagasti para que solicite à OEA (Organização dos Estados Americanos) uma auditoria do processo eleitoral. O presidente interino se recusou, alegando, entre outras coisas, que a própria organização já havia acompanhado a eleição sem detectar nenhuma irregularidade. Além da OEA, observadores independentes e o governo dos EUA afirmaram que o pleito ocorreu sem sobressaltos.
O atual ministro da Justiça, Eduardo Vega, também disse que o governo, “pelo princípio de neutralidade, deve respeitar as instituições do Estado e, por isso, não atenderá ao pedido”. Antes, Sagasti já havia se recusado a receber uma carta de militares aposentados com mais de cem assinaturas em favor da realização de uma nova eleição no país.