Crescimento do turismo em Cancún atrai disputa de cartéis e máfia internacional
Em outubro, uma alemã e uma indiana morreram em um restaurante em Tulum
Entre a areia quase branca e o mar muito azul, dois soldados passavam a cada dez minutos, com armas enormes em punho. Ninguém parecia se importar, porém. As dezenas de turistas aproveitavam o fim de tarde na praia Lagarto, em Cancún, ao som de música pop, como se os agentes não estivessem ali.
Militares patrulhando praias não são novidade no México, mas houve um reforço na segurança em dezembro, com a criação de um Batalhão de Segurança Turística, depois de crimes graves em áreas turísticas.
Em outubro, uma alemã e uma indiana morreram em um restaurante em Tulum, a 131 km de Cancún. Segundo as autoridades, um grupo armado invadiu o local para matar rivais, e a troca de tiros as atingiu.
Em novembro, atiradores chegaram de lancha e mataram dois homens em Puerto Morelos (a 38 km de Cancún). A perseguição começou na praia e adentrou um resort, com turistas correndo para se esconder –alguns deles postaram vídeos nas redes sociais enquanto buscavam abrigo. Na ocasião, um hotel foi acusado de gerar o problema por ter dado a um hóspede, a pedido dele, o contato de um traficante ligado a um cartel diferente do que atuava na região. O empreendimento nega.
Nesta sexta (21), dois canadenses morreram baleados depois de uma discussão em um resort na Riviera Maya. Segundo as investigações preliminares, uma arma foi disparada em meio a uma discussão entre hóspedes no hotel Xcaret –o suspeito e as vítimas têm antecedentes criminais no Canadá. O local informou à agência Reuters que o incidente parece ser isolado.
Nos casos anteriores, as autoridades apontaram que os tiroteios foram motivados por brigas entre grupos rivais para controlar pontos de venda de drogas. “Membros dos cartéis ficam em lanchas vigiando a atuação de seus traficantes nas praias, para não deixar que membros de outras organizações atuem ali”, explica Eduardo Guerrero, consultor de segurança pública que já atuou no governo. “Há muita instabilidade no mercado criminal, porque os grupos pequenos estão sempre evitando serem absorvidos pelos maiores.”
Guerrero avalia que as eleições locais, realizadas no ano passado, impactaram na alta de violência. “Os novos prefeitos mudam o comando na área de segurança, e isso mexe com pactos entre autoridades e criminosos. Os grupos fazem atos violentos para mostrar poder e ganhar força em negociações.”
Para Luis Sánchez Díaz, pesquisador da ONG Causa en Común, os cartéis podem querer influir em eleições mesmo que não tenham acordos diretos com os políticos. “Um candidato que promete combate mais aberto ao crime pode trazer mais problemas do que outro que não destaca isso nas propostas”, comenta.
No estado de Quintana Roo, que inclui Cancún, Tulum e outras cidades turísticas, ao menos seis grupos brigam por espaço e novos negócios –metade deles tem ligação com organizações transnacionais. A região tem crescido bastante: desde 2016, foram abertos cerca de 20 mil novos quartos de hotéis, e a oferta se aproxima de 120 mil.
Vários condomínios fechados também estão sendo erguidos, e o governo federal planeja inaugurar, no fim de 2023, o trem Maia, que irá conectar as cidades litorâneas.
“Em Tulum, há um subtipo de turismo peculiar: milionários dos EUA meio ‘hippies’. São despreocupados com a aparência, mas têm muito dinheiro e demandam drogas caras. Muitos são aposentados e buscam serviços sexuais de gente jovem, o que gera também um mercado de tráfico de pessoas”, diz Guerrero.
Tulum tem registrado a maior taxa de homicídios da região: 133 por 100 mil habitantes (no estado de São Paulo, a taxa foi de 7,3 em 2020). O estado de Quintana Roo vive uma alta de mortes violentas desde 2017 –com ligeira melhora recente–, e a maioria dos crimes ocorre em bairros a poucos quilômetros de áreas turísticas.
Apesar do aumento do efetivo policial, a venda de drogas prossegue de forma aberta. Na Quinta avenida, em Playa del Carmen (a 70 km de Cancún), “coca y marijuana” são oferecidas à luz do dia. Vendedores se aproximaram da reportagem da Folha três vezes em cinco minutos –uma delas segundos após a passagem de uma viatura, na qual um agente armado ia em pé, na caçamba, com fuzil na mão.
À noite, em duas das principais baladas de Cancún, a cena se repetiu nos banheiros. Um vendedor em geral fica a postos e aborda quase todos os frequentadores que entram. Quando o cliente aceita, é levado para dentro de uma cabine sanitária para fechar negócio. O comprador pode provar o item antes de pagar.
“Muitos locais viram que poderiam lucrar com isso, pois, ao permitir que se vendam drogas ali, podem ficar com parte dos ganhos. Mas há casos também em que os comerciantes são coagidos a aceitar a presença do tráfico”, explica Guerrero.
Como medida de restrição pela pandemia, as baladas nas vias principais têm fechado mais cedo, por volta de 23h. Mas a festa continua até de madrugada nas ruas de trás, como em um Carnaval fora de época. Há turistas de muitas partes do mundo, incluindo muitos grupos de americanos que viajam para se despedir da solteirice e se embebedar sem muitos freios.
Segundo o jornal The Washington Post, autoridades de Quintana Roo tiveram reuniões com os consulados dos EUA e de outros países para pedir que orientassem seus cidadãos que é ilegal comprar drogas no México.
“Turistas precisam ter consciência dos efeitos que suas demandas têm sobre as comunidades locais”, diz Christian Ascensio, doutor em sociologia e pesquisador de violência na Unam (Universidade Nacional Autônoma do México).
Ele avalia que os empresários hoteleiros também deveriam se preocupar mais com os impactos em seu entorno. “Muitas vezes se promove um turismo ‘amuralhado’: o viajante chega do aeroporto, pega um traslado e fica a viagem toda sem sair do resort.”
Vários desses locais em Cancún possuem estruturas enormes, com vários restaurantes e bares. Um deles conta com duas baladas internas e um cassino. As diárias, com refeições incluídas, podem superar os US$ 500 (R$ 2.700).
Dentro dos resorts, a reportagem não presenciou venda ou consumo de drogas em áreas comuns e, quando perguntados sobre a segurança, os funcionários diziam que não havia com o que se preocupar, pois havia muito policiamento na região.
Na estrada que liga a cidade a outras praias, o cenário é outro. A ida a Playa del Carmen leva cerca de uma hora, e no trajeto, a Folha viu raros carros de polícia. “Uma viatura nos parou na estrada, disse que nosso carro estava irregular e que nossos documentos seriam apreendidos”, disse Avril Adams, 26, que viajou de Toronto, no Canadá, com dois amigos, e dirigia um carro alugado. “Falaram que poderíamos pagar ali na hora e ir embora. Perguntaram o quanto tínhamos. Demos US$ 18 de propina e nos liberaram.”
Embora o valor (equivalente a 368 pesos mexicanos ou cerca de R$ 100) seja baixo para um turista americano, equivale a dois dias de trabalho com salário mínimo no México. Em fóruns como o Trip Advisor, turistas relatam ter deixado até US$ 200 (R$ 1.090) com policiais após serem parados nas estradas. Procurada, a Secretaria de Segurança Pública de Quintana Roo não quis se pronunciar.
Na estrada, placas anunciam novos empreendimentos e condomínios de luxo, em um sinal de que a expansão continua firme. A consolidação de Cancún como principal destino turístico mexicano é recente: o lugar era uma vila de pescadores até os anos 1970, quando hotéis começaram a ser construídos. O negócio foi se consolidando até que, em 2019, a cidade recebeu 15 milhões de viajantes –em média, cada um gera receitas em torno de US$ 5.000 para a região, segundo dados do governo federal.
O número de turistas caiu quase à metade em 2020, mesmo com o México tendo mantido fronteiras abertas durante a pandemia. No ano passado houve uma recuperação, e 12,5 milhões de pessoas foram à região. A cifra representa metade do total de viajantes que visitou o México no ano.
“Dos empregos perdidos na pandemia, 80% foram recuperados. Foi muito importante para a economia manter o acesso aberto aos turistas, seguindo os protocolos”, diz Bernardo Cueto, secretário de Turismo de Quintana Roo. O estado tem 1,8 milhão de habitantes.
O crescimento, porém, tem atraído os grupos criminosos. Na última década, uma máfia romena se estabeleceu na região e chegou a faturar US$ 70 milhões por ano só com fraudes bancárias, segundo as autoridades mexicanas. Os bandidos instalavam equipamentos para clonar cartões de crédito e obter a senha em caixas eletrônicos nas áreas turísticas. Parte do dinheiro ilícito era investida em imóveis locais.
Florian Tudor, o Tubarão, apontado como líder dessa máfia, foi preso em maio de 2021. Ele está na prisão de segurança máxima El Altiplano, a mesma de onde El Chapo já escapou, em 2015. Investigações apontam que relações com políticos ajudaram a quadrilha a seguir impune por anos.
Outro negócio ilegal que tem crescido na região são os chamados “cobros de piso”: criminosos exigem um valor mensal a comerciantes em troca de proteção. Quem não paga sofre represálias e pode ser morto.
Especialistas em segurança apontam que as saídas para conter a violência passam por aumentar a presença do Estado, melhorar as condições de trabalho da polícia, combater a impunidade e aproximar os agentes da população, para que haja confiança mútua e denúncias não fiquem sem resposta. “Há muitos casos de impunidade, em que a população faz queixas de extorsão e nada acontece. E também casos de gente que ficou presa por anos sem ter uma sentença”, comenta Sánchez, da Causa en Común.
O maior risco para Cancún é ter o destino de Acapulco, que passou a ser evitada por turistas após confrontos de gangues e ações violentas nos anos 1990 e 2000. Antes disso, o balneário no Pacífico atraía celebridades, era destino de milionários e foi destaque em um especial do seriado “Chaves”, reprisado por muitos anos na América Latina. Hoje, não se sabe se os personagens se sentariam na areia sob o pôr do sol.
Por Rafael Balago