Viúvas da tragédia da Chape apontam corretor do seguro como principal responsável
Acidente com aeronave que transportava os jogadores ocorreu há cinco anos atrás
Mara Paiva afirma ter lutado durante muito tempo para tirar um pensamento da sua cabeça: como foram os últimos minutos de vida do seu marido, o ex-jogador e comentarista Mario Sergio?
Com o tempo, ela aprendeu a focar os erros e omissões que levaram ao acidente aéreo que tirou a vida do seu marido e as de outras 70 pessoas. E a buscar justiça.
“Como aquilo aconteceu? Como ele viveu seus últimos momentos? Isso foi uma coisa que fez com que a minha família sofresse muito. Eu sofri muito. Imagina o sofrimento das pessoas dentro daquele avião sabendo que ia cair”, afirma ela.
Quase cinco anos depois da queda do voo 2933 da LaMia, que levava a equipe da Chapecoense, a comissão técnica e jornalistas para a final da Copa Sul-Americana de 2016, Fabiene Belle e Mara, respectivamente presidente e vice da Associação dos Familiares e Amigos das Vítimas do Voo da Chapecoense (AFAV-C) reconhecem existirem diferentes culpados.
A aeronave não caiu nos arredores de Medellín, na Colômbia, na madrugada de 28 de novembro daquele ano, por um erro individual. Mas elas não vacilam em apontar o dedo a quem acreditam ser o maior responsável.
“Se o Simon Kaye não fosse tão flexível em oferecer oportunidades para a LaMia voar, esse avião não sairia do chão. A LaMia era uma companhia capenga, e a Aon fez uma corretagem capenga. Uma apólice de US$ 25 milhões (R$ 134 milhões pela cotação atual) para carregar uma equipe de futebol e que tinha uma cláusula de exclusão territorial que invalidava o seguro?”, reclama Fabienne, viúva de Cesinha, fisiologista da Chapecoense.
Kaye foi o responsável pela apólice da corretora Aon no seguro da aeronave. Para as famílias, esse foi principal fator para a tragédia e se transformou na maior briga judicial.
O seguro do avião era da Bisa, empresa que, pouco antes do acidente, informara as autoridades bolivianas de que a LaMia não poderia mais voar por estar atrasada com o pagamento da apólice. A corretora era a Aon e a resseguradora (responsável, no fim, pelo pagamento, porque a Bisa não teria capital para isso) era a Tokio Marine Kiln.
Na época, o seguro era de US$ 300 milhões (R$ 1,6 bilhão pelos valores de hoje). Para manter a LaMia como cliente e evitar que ela procurasse outra corretora, a Aon, por meio de Kaye, enviou duas propostas de uma nova apólice: uma de US$ 50 milhões (R$ 268 milhões) e outra de US$ 25 milhões (R$ 134 milhões). A última foi escolhida por Loredana Albacete, filha de Ricardo Albacete, dono da aeronave.
O argumento de advogados de famílias de vítimas envolvidos na causa é que, a partir do momento em que a LaMia começou a transportar equipes de futebol, o seguro não poderia ter o valor reduzido, mas sim aumentado. Sem um seguro válido e em vigência, a companhia aérea boliviana não poderia decolar.
A reportagem entrou em contato com a Aon para questionar a atuação de Kaye no caso. A empresa respondeu ser “decisão do cliente decidir quais coberturas e limites ele optará por adquirir” (leia a nota na íntegra abaixo).
“Os passageiros não tinham noção do que estava acontecendo. Eles não sabiam se o seguro estava em ordem. Isso era obrigação das agências controladoras no Brasil, na Colômbia e na Bolívia”, completa Mara.
“A ponta principal é quem permitiu que esse seguro existisse”, concorda Fabienne.
Após o acidente, a Bisa fechou seu escritório no Brasil. A Aon acredita que, como corretora, não é sua atribuição pagar a apólice. A Tokio Marine Kiln argumenta que, como a LaMia voou para a Colômbia, um dos locais não cobertos pelo seguro, o documento se tornou inválido. A multinacional, que tem contratos com estatais brasileiras, instituiu o que chamou de “fundo humanitário”.
Os familiares de vítimas que aderem ao programa recebem cerca de US$ 200 mil (cerca de R$ 1 milhão), mas abrem mão de todos os processos referentes ao seguro.
Há processos na Colômbia, na Bolívia, no Brasil e nos Estados Unidos. Neste, juiz da Flórida estipulou o valor da causa em US$ 844 milhões (R$ 4,5 bilhões).
Fabienne, Mara e a Associação, nos últimos anos, recolheram documentos e depoimentos para reconstruir a história do voo e dos motivos que levaram à tragédia. Descobriram que os pilotos Marco Rocha Venegas e Miguel Alejandro Quiroga não recebiam salários. Eles só ganhavam quando viajavam. Isso explica, em parte, a máxima economia possível a cada voo.
Quiroga morreu no acidente. Rocha vive na Flórida, está proibido de pilotar e sobrevive pintando casas e vendendo empanadas.
A viagem da Chapecoense partiu com a quantidade exata de combustível, o que vai contra as normas da aviação.
“Eu me encontrei com [Ricardo] Albacete no Brasil e nos Estados Unidos. A história da LaMia é muito obscura. Por ver a oportunidade de ter seus direitos reconhecidos, o direito securitário, ele nos ofereceu toda a negociação do seguro, toda a história da formação da LaMia. Temos um número de folhas de documentos absurdo”, diz Fabienne.
A documentação serviu como parte da munição da CPI da Chapecoense, que foi interrompida por causa da pandemia e deverá ser retomada no final deste ano. Albacete, um ex-senador venezuelano amigo dos ditadores Hugo Chávez e Nicolás Maduro, vive na Espanha.
Em seu depoimento na CPI, ele irritou os parlamentares brasileiros com respostas evasivas. Loredana, sua filha que negociou o seguro com a Aon, não tem sido encontrada.
“Eles [os pilotos] mostraram quem eram quando disseram que voariam custasse o que custasse. A indenização é uma consequência. Nunca foi o objetivo principal. Não é porque estamos falando de empresas poderosas que não vamos mostrar o que aconteceu”, constata Fabienne.
Ela, assim como Mara, teve de aprender a lidar com o luto.
“A forma como aconteceu nos deixou uma marca muito profunda. Tem a questão da má prática, da injustiça. A morte violenta marca muito. Além de ter o luto, você tem aquela dor de se colocar no lugar do outro até para elaborar esse luto”, analisa a viúva de Mario Sergio, comentarista da Fox Sports que, segundo ela, nem deveria estar naquele avião.
Elas definem tudo isso como uma busca por dignidade.
“Foram essas empresas que provocaram a minha viuvez, a morte do pai dos meus filhos. Tudo isso deve ser colocado em pratos limpos. Um empregado de uma corretora fez um seguro que possibilitou à LaMia sair do solo. Isso precisa ser esclarecido”, finaliza Mara Paiva.
Em resposta aos questionamentos da reportagem, a Aon afirma o seguinte:
“Expressamos nossa solidariedade a todos os atingidos por esse trágico evento. Como corretora, o papel da Aon é ajudar seus clientes a contratar seguro e resseguro junto a seguradoras e resseguradoras, que por sua vez decidem sobre o pagamento de indenizações. É decisão do cliente decidir quais coberturas e limites ele optará por adquirir. Por isso, neste caso, a Aon seguiu as instruções recebidas do cliente e cumpriu seus deveres e obrigações contratuais”.
Por Alex Sabino e João Gabriel