Priscilla Alcantara sai do gospel para dizer que ódio bolsonarista não é cristão

Cantora afirmou que confrontou "a própria hipocrisia"

Em geral, resiste bem a dor, mas desta vez ela admite que não deu. Pediu uma pomada anestésica para tatuar uma palavra na parte interna dos lábios: “Amar”.

Já perdeu a conta de quantas tatuagens tem. A nova ela fez às vésperas de quando lançou seu novo single, “Você Aprendeu a Amar?”, um dueto com Emicida, composto pela dupla junto a Lucas Silveira, da banda Fresno. Aqui foi o contrário: precisou de uma pandemia para que a artista paulista de 26 anos se sentisse menos anestesiada com o que rolava a seu redor.

Vinha em ritmo frenético com uma carreira de sucesso na música gospel, até levar uma paulada da crise da Covid-19.

“Aí o mundo de todo mundo parou. Olhei pros lados e vi muita coisa horrível. Onde eu estava pelo meu próximo quando tudo isso estava acontecendo com ele?”

Priscilla, que é evangélica, conta que começou a se interessar por causas sociais. Confrontou “a própria hipocrisia” porque se dizia temente a Deus, “mas estava sempre com pressa, cega pela religião, talvez”.

Naquele maio de 2020, as polícias americana e brasileira assassinaram George Floyd e João Pedro. Foi quando a compositora escreveu a letra que cita as duas vítimas de violência policial e fustiga o cristão que nada faz diante de injustiças afins.

São versos como “A incoerência da fé/ Que diz ‘Deus é amor’/ E esconde esse Deus/ Em nome do temor”, e “Eu já vi tanta gente/ Que dizia saber curar/ Passando reto/ Por quem só sentia dor”.

Ela diz que a maior crítica, na canção, é a ela mesma. Muita gente, contudo, viu ali indiretas a pares cristãos, sobretudo àqueles sentados na cabeceira do poder evangélico. “É aquele caso, se a carapuça serve…”

Coqueluche da juventude bolsonarista, o vereador Nikolas Ferreira, do PL de Belo Horizonte, é da mesma idade e religião que Priscilla, e isso é tudo o que eles têm em comum. Ele reproduziu numa rede social a foto do “amar” que ela escreveu dentro da boca e resgatou o desenho que o grande nome do pop nacional tatuou próximo ao ânus. E insuflou: “Pelo visto não é só a Anitta que faz tatuagem onde sai merda”.

Priscilla diz que prefere “nem gastar energia” com Nikolas e os que subscrevem essas “palavras anticristãs”.

“São coisas que não fazem sentido na minha cabeça. É impossível entender como existe lógica num Deus que é amor, mas com palavras de ódio.”

Não foi só a transição da cena gospel para um pop cheio de roupa justa que irritou um quinhão do segmento evangélico que passou a vê-la como ovelha desgarrada. Também incomodou Priscilla ter tachado de “podre” a opinião de Bruna Karla, cantora gospel que se gabou de ter declinado convite para o casamento de um amigo LGBTQIA+, por considerar que os gays estão “no caminho da morte eterna”.

Priscilla tem um posicionamento político claro e acha bom que seja assim. “As pessoas sabem que eu odeio esse governo, que não vou votar no Bolsonaro.” Tem simpatia por Marina Silva, ex-presidenciável que em 2022 deve concorrer a deputada federal, mas acredita que, numa eleição tão polarizada como a atual, há algo maior em pauta. Uma piscadela para Lula.

Ela inclusive anunciou, meses atrás, que nunca mais cantaria “Liberdade”, hit de sua fase gospel. Motivo: Bolsonaro o havia usado de trilha num post. “Gente, o que eu fiz de tão errado pra merecer isso?”, a compositora comentou abaixo de um print da curadoria presidencial.

Para ela, é “inerente ao artista ser uma voz”, e aqui ela se lembra de Leonardo Gonçalves, cantor evangélico de esquerda que continua no gospel. Mas se lembra também de Anitta.

Um dos livros prediletos de Priscilla é “A Arte e a Bíblia”, em que o teólogo Francis Schaeffer encoraja cristãos a adorar a Deus por intermédio da arte. “Ele falava que, dentro de uma sociedade, o artista é a pessoa que mais tem chance de mudar uma cosmovisão. E é verdade, olha a força cultural de Anitta. Estamos falando de formar cabeças.”

Ela não gosta de rótulos prontos, todavia. “Jesus é meu pilar, minha família é meu pilar. No final do dia, não paro e penso: fui cristã progressista hoje? Só quero saber se fui coerente com a minha fé.”

Priscilla tem quilometragem no meio artístico, religioso ou não. Frequentava uma igreja adventista de Itapecerica da Serra, na Grande São Paulo, com a família quando participou de um concurso musical do SBT sob a batuta de Celso Portiolli. Cantou Rouge e Wanessa Camargo.

Silvio Santos aprovou e pôs a menina para comandar o matinal Bom Dia e Cia ao lado de Maísa e Yudi Tamashiro.

Priscilla às vezes ganhava broncas do patrão, que podia encrencar com roupas que deixavam sua barriga de fora.

Ainda criança, quando despontou na música gospel mirim, bateu de frente com a inflexibilidade de alguns irmãos evangélicos. “Com oito anos de idade, tive minha primeira treta com a igreja”, diz, rindo. “Chegou ao ponto de ter que decidir entre cantar na TV ou continuar na igreja. Eu e minha família fomos meio que colocados contra a parede pelos pastores.”

Não foi uma escolha difícil. “Meus pais falaram para mim: você tem esse sonho, tá conseguindo realizá-lo, e igreja tem várias. Escolhi meu sonho. Sabia que Deus tava comigo naquilo. E que eu ia encontrar uma outra igreja.”

Priscilla já transitou por denominações como Bola de Neve e Renascer em Cristo.

Hoje está numa igreja menor. Também gosta da ideia de células cristãs, como as que a amiga Bruna Marquezine promove em casa. Nesses encontros caseiros, discutem fé de forma “freestyle” ou com a ajuda de um pastor convidado. “É muito difícil encontrar uma igreja onde a gente, pessoa pública, se sinta à vontade”, diz. “Às vezes ficam observando muito, rola um desconforto.”

Priscilla está pisando em território novo. Estava há mais de dois anos sem fazer show, por causa da pandemia, mas também da metamorfose pela qual passou, do gospel para o pop secular –o que fez com incentivo de Iza e Gloria Groove, amigas dessa nova cena.

O jejum acabou no último dia 5, quando estreou em Salvador seu novo espetáculo, que chega nesta sexta (12/8) em São Paulo. Passa por Porto Alegre no sábado (13/8), na casa Opinião; Belo Horizonte no dia 20, no espaço Distrital; e em 1º de outubro no Vivo Rio. Em 11 de setembro, a veterana de apresentações na Marcha para Jesus estreia no Rock in Rio.

Ela sabe que deve muito dessa fase ao The Masked Singer Brasil, reality musical da Globo que pôs famosos para cantar com fantasias, de modo que ninguém sabia quem eram. O unicórnio, identidade secreta de Priscilla, venceu em 2021.

Ela achou uma “ótima metáfora” para o que sempre sonhou, “ser reconhecida apenas pela minha voz”, sem letreiros prévios: veja aqui a crente!, ou olha só a crente desviada! Tem como meta ser a maior solista que o Brasil já viu. “Quando pensarem em voz, quero que pensem em mim.”

E que sua crença não dite os rumos artísticos que deva tomar. “Quero que as pessoas percebam que tá tudo bem, você não precisa abrir mão da sua fé e que cantar outra música não é sinônimo de falta de fé. Não tem outra palavra mais doce, mas isso é um pensamento burro.”

Sair da versão mobile