Fernando Meirelles, que faz série sobre maconha, diz que ela faz menos mal que álcool

Tema volta já naturalizado à segunda temporada de 'Pico da Neblina', série da produtora O2 ainda sem data de estreia

Depois de fazer um exercício de futurologia ao mostrar como seria o Brasil após a legalização da maconha, e levantar diversas reflexões sobre o tema, a segunda temporada de “Pico da Neblina” vai aprofundar os conflitos de seus personagens. Dirigida por Quico Meirelles, a trama da HBO Max ainda não tem data de estreia.

No fim da primeira safra, a venda de maconha em lojas é tão natural como comprar um pão na padaria, com direito a fila de clientes. Até o temido CD (Dexter), líder do tráfico de drogas de uma favela de São Paulo, adere àquela tendência e se apodera dos negócios que os amigos Biriba (Luís Navarro) e Vini (Daniel Furlan) tanto lutaram para construir.

Pai de Quico, Fernando Meirelles, diretor de “Cidade de Deus” e sócio da O2, que produz a série, afirma em entrevista à Folha que “Pico da Neblina” consegue dissipar a ideia da maconha como uma droga perigosa. “Ela é muito menos nociva que o álcool, incomparavelmente, mas tem essa carga né, um estigma.”

A série trata o consumo da maconha sem rótulos e como algo que faz parte do dia a dia, segundo ele. “Se você toma um vinho no jantar é normal, mas se você fuma um baseado é marginalizado”, diz Meirelles. “A trama acaba normalizando o consumo, que não é aquela coisa cheia de bandidos. São pessoas normais, famílias.”

Para Meirelles, atualmente no Brasil há uma bancada conservadora no Congresso que acredita que a maconha é uma droga terrível que vai levar à cocaína. Ele defende os benefícios da legalização ao citar a personagem Suzette Tortoriello (Maria Zilda Bethlem), a mãe de Vini, mulher rica da alta sociedade paulistana que, na trama, usa a maconha para aliviar as dores causadas por um câncer.

“Maconha medicinal já foi aprovada. O Brasil está andando aos poucos. Mas [a maconha] ainda vai ser legalizada no país, inexoravelmente, queira o pastor ou não. Só está mais demorada porque esse Congresso retrógrado ainda tem uma bancada evangélica forte. Mas eles passarão”, diz Meirelles.

Para Quico, a série tem a virtude de mostrar essa realidade proposta em “Pico da Neblina” para as pessoas conhecerem o assunto e desmistificar o tema. “A segunda temporada vai mais fundo, ainda, na questão do racismo e da segregação no Brasil. E os dramas dos personagens, que têm muito mais a perder, vão ser aprofundados.”

Intérprete de Biriba, Luís Navarro, da novela “Pega Pega” (Globo), também é a favor da legalização e cita uma fala de seu personagem na primeira temporada, quando alguém lhe pergunta o que mudou com a liberação da maconha.

“Biriba responde que o negro, nessa nova dinâmica, não vai ser preso por causa de um baseado no bolso. Eu, Luís, tenho amigos negros que foram presos recentemente porque estavam portando maconha e ficaram encarcerados por quatro meses”, afirma o ator.

Segundo ele, isso não acontece na porta de uma universidade cara. “A legalização já existe, mas ela é classista.”

Navarro conta que nasceu na Cohab 1, em Artur Alvim (zona leste de São Paulo), e enxerga muitas semelhanças entre ele e Biriba.

“Somos da zona leste, ele é um cara sonhador que pensa no melhor para a família. Me identifico muito com ele e aprendo nessas questões de batalhar e não esperar por ninguém.”

Biriba, para Navarro, é um herói brasileiro, “principalmente na quebrada em que ele mora”. O ator lembra que seu personagem consegue chegar aos 30 anos de idade, ao contrário de muitos jovens pobres e negros que acabam se envolvendo com o tráfico e morrem, segundo ele, com média de 25 anos.

“Mas Biriba é um cara diferenciado. O arco dele na série é tentar fugir do crime, que é o que ele mais quer na vida, porque ele carrega esse peso de parecer com o pai [que era criminoso]. Só que dentro da nova temporada ele vai descobrindo mais camadas sobre o pai e o que de fato ele herdou dele.”

Mas Biriba está tenso e depressivo na nova safra, segundo Navarro. Pela densidade que seu personagem carrega, o ator começou a fazer terapia. “Vivo mais o Biriba do que o Luís, são 12 horas de set todo dia. É um personagem muito denso, com muitos problemas para resolver, é bem complexo. Então as pessoas vão esperar muito mais do Biriba nesta temporada.”

Daniel Furlan, intérprete de ​Vini, adianta que na segunda temporada o público pode esperar muita provação, humilhação e redenção de seu personagem. E a amizade com Biriba, apesar de genuína, segundo ele, vai passar por mais provações.

“Tem algumas tensões e mágoas com as quais eles vão se deparar de novo, coisas mal resolvidas na primeira temporada, porque eles têm um interesse em comum, que é o sucesso da loja. Só que o negócio deles está recomeçando de forma bem delicada, com a participação do CD.”

Outro personagem que dá uma reviravolta na primeira temporada é justamente o temido traficante Cláudio Dias, o CD, que descobre ter uma filha com uma antiga paixão da comunidade.

“Humanizou o cara né. Todos nós somos seres humanos, até o cara mais durão. Algo ali pega ele pelo coração [na primeira temporada]. Estou bem feliz com essa reviravolta na história”, afirma o rapper Dexter, que tem se destacado tanto no papel de CD que ganhou mais espaço na nova temporada.

Dexter afirma que seu personagem, assim como ele, sofreu dentro da prisão. “Agora ele quer amar demais essa família. No fundo, ele é um cara batalhador, guerreiro, que passou pelo inferno. É a minha história, temos uma semelhança gigantesca. Eu também já fui preso, conheço o sistema carcerário de dentro, conheço essa engrenagem e a cabeça de quem ganha com seres humanos presos”, afirma ele, que já foi preso por assalto à mão armada (157).

“Só não fui traficante como o CD, mas já andei muito nesse mundo paralelo da ilegalidade, por isso fui preso, inclusive. A [minha] intenção não era a mesma do CD, mas ambos cometeram crimes”, afirma Dexter. “Mas CD também é vítima de uma sociedade hipócrita, onde um cara que não teve a oportunidade de estudar, de trilhar uma caminhada diferenciada. Mas ele não se acomodou com essas mazelas e foi em busca de viver uma vida bem vivida só que, infelizmente, por meio da ilegalidade.”

Por Tatiana Cavalcanti

 

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