‘Devolvo a Portugal aquilo que criamos na cultura brasileira’, diz Daniela Mercury
Aos 56, cantora fala sobre relação com país europeu e se diz ofendida pelo governo de Jair Bolsonaro
Em meados de 1997, Daniela Mercury, então com 32 anos, estava apreensiva. Era a primeira vez que faria um show em Portugal, e ela temia que sua música afrobaiana não fosse bem recebida.
“Não entendia muito o que era Portugal -sendo que sou filha de português”, conta a artista, 24 anos depois, em entrevista por videochamada ao jornal Folha de S.Paulo.
António Abreu, 93, pai de Daniela, nasceu na cidade de Braga e veio para o Brasil com a família quando tinha seis anos, após seus tios-avós terem desembarcado no país e obtido sucesso no comércio. Fora o que vivera dentro de casa, a cantora, nascida e criada em Salvador, pouco sabia da cultura lusitana.
A apreensão logo deu espaço a um “encantamento à primeira vista”. O primeiro de três shows que realizou naquela turnê foi no Coliseu de Lisboa, num sábado de dezembro. Os ingressos esgotaram com um mês de antecedência, e Daniela se surpreendeu com a abertura dos portugueses.
“Lembro-me bem do roteiro. Começava com ‘Nobre Vagabundo’, uma música que eles amam muito, e todos ouviram sentados. Depois, a segunda música já era ‘Rapunzel’, então eles se levantaram e dançaram. Aí a terceira música começava lenta, e no meio ficava rápido.”
Havia diversidade entre os presentes. Crianças, jovens e idosos elogiaram a brasileira ao jornalista Luiz Antônio Riff, enviado especial da Folha que acompanhou a apresentação. “Sambei um bocadinho”, disse ao repórter a portuguesa Amélia Ferreira, então com 65 anos e mãe de 13 filhos. “Acho ela gira [legal]. Dança bem, mexe-se muito e tem a cara gira [bonita]”, comentou Sara Faria, à época com 8.
Não bastasse a receptividade, o show no Coliseu foi também o pontapé para a conexão de Daniela com Portugal. A avó Josefina, então com 95 anos, estava presente. Concertista de piano, ela havia deixado o país de origem havia cinco décadas. “Foi uma das maiores emoções da minha vida”, descreve a artista.
A emoção não tinha apenas um pano de fundo pessoal. Mais de duas décadas depois, Daniela lembra do movimento de artistas que, diz ela, devolvia a Portugal, a ex-metrópole, um cadinho do que é o Brasil. “Era revolucionário. Teve um dia que participei de um prêmio e disse: ‘Pois é, os navios negreiros voltaram’.”
“Quando levamos a cultura de volta, devolvemos o nosso olhar sobre tudo que aconteceu conosco. Era uma forma de Portugal entender o que é o Brasil, e nada melhor do que a arte para fazer essa devolução.”
Desde então, a carreira se firmou no cenário português, e a baiana se tornou uma das artistas estrangeiras que mais sucesso fez no país. Somente o disco “Feijão com Arroz” vendeu mais de 250 mil cópias.
Quantos shows já fez em Portugal? Da última vez que contou, eram mais de cem -número que, para Malu Verçosa, 45, é subestimado. “Desde que estamos juntas, já foram mais de 40”, diz a jornalista e esposa de Daniela. Elas começaram a namorar em 2013 e chegaram a casar na ilha do Faial, uma das que compõem o arquipélago dos Açores. De viagem em viagem, a cantora foi compreendendo suas raízes e vendo refletidas as experiências que tinha dentro de casa com a avó e o pai. “Fui entendendo quem eu era.”
Algumas percepções vieram no cotidiano. Outras, no estudo. “Estudando você observa que o xote, o xaxado, o baião e vários desses ritmos são de Portugal e foram se transformando no nordeste brasileiro.”
Foi fácil, afirma a cantora, apaixonar-se pelas pessoas, pelos espaços e pela culinária lusitana. Uma das coisas de que mais gosta é a arquitetura portuguesa, cujos traços estão presentes em Salvador .
Já as semelhanças que não observou em Portugal a artista encontrou em outros países de língua portuguesa. Em Angola, deparou-se com pessoas que, no samba de roda, batem palmas “exatamente como a gente bate em Salvador”. Nem sequer em outras cidades brasileiras elas se repetem, diz a artista.
Ao longo de mais de 20 anos de carreira em terras lusitanas, observou mudanças sociais. A juventude, antes mais conservadora, foi “se abrindo”. Atribui ao mercado comum europeu -e ao consequente diálogo com cidadãos de outros países- o motivo. “As pessoas começaram a pensar como Europa.”
A alegria com que Daniela narra sua relação com a lusofonia contrasta com a seriedade que adota quando questionada sobre o momento atual do Brasil. “Acho que a gente está passando por um depuramento, como uma revisão de ginásio. Olhando para a nossa história e pensando tudo o que deixamos de fazer, de afirmar com a contundência necessária”, afirma, referindo-se aos recentes ataques à democracia.
Durante a pandemia, reclusa com a família em uma de suas casas em Salvador, tem tentando acompanhar as notícias da política nacional e as manifestações sociais de um momento “completamente único”.
“Apesar de fazer músicas muito alegres, construí toda a minha obra dentro do conceito de falar ritmicamente, alegremente e em tom menor sobre temas densos e profundos. Muita gente só veio perceber essas letras depois que começamos a falar mais sobre temas como racismo nos últimos anos.”
Logo em um de seus álbuns de maior sucesso, “Canto da Cidade”, de 1992, compôs “Geração Perdida”, sobre a ditadura militar (1964-1985), com versos como “o leite derramado é vermelho, como a cor dos nossos cabelos” e “geração perdida; artistas, negros, mãe; nossos mortos sem vida; dor que ainda dói”.
Ela, que nasceu um ano após o início da ditadura, conviveu com o medo de se manifestar publicamente. “É muito desagradável estarmos de novo passando por intimidações. Neste momento, não estamos podendo exercer nossa fala com tranquilidade. Nossa liberdade de expressão tem sido tolhida.”
Os flertes com o autoritarismo de hoje têm raízes numa espécie de relacionamento mal acabado, diz. “Algo que a gente não resolveu lá atrás, ao não deixar claro que o autoritarismo não nos interessa.”
Diz que os resquícios do passado foram agravados pela postura de Jair Bolsonaro (sem partido), “que sempre tenta fazer com que sua forma de pensar prevaleça, o que não cabe numa democracia -de maneira nenhuma”.
Também afirma ver com bons olhos a leva crescente de artistas se posicionando sobre política. Aos mais novos, diz, cabe aprender com os mais velhos, que “sabem que precisam falar sempre”. “A manifestação é sempre bem-vinda quando a situação é grave, e esse é um momento em que a democracia é ameaçada.”
Em junho, por sugestão de Daniela, o Conselho Nacional de Justiça criou um grupo para identificar situações em que a população LGBTQI+ fica mais sujeita a violências. Sete anos antes, em 2014, foi premiada pela Câmara de Lisboa por sua “luta contra a discriminação em função da orientação sexual e da identidade de gênero”. “Temos que voltar para a nossa vocação principal: a democracia, a liberdade e a busca da justiça social. Equilibrar esse capitalismo para que ele possa dar oportunidade a mais pessoas.”
Em dezembro, por ocasião do Dia Internacional dos Direitos Humanos, fez o roteiro de um vídeo manifesto com a música “Apesar de Você”, de Chico Buarque, que protagonizou ao lado de outros 20 artistas.
E é com outra canção que termina a entrevista. “Como diz Gonzaguinha, ‘a gente não tem cara de panaca, a gente não tem jeito de babaca (…) a gente quer valer o nosso amor’.”
Por Mayara Paixão