Charli XCX precisou ser previsível para voltar a ser imprevisível no novo ‘Crash’

Cantora pop lançou novo álbum nesta sexta-feira (18/3)

Enquanto finalizava seu novo álbum, Charli XCX postou no Twitter que estava deixando as redes sociais por um tempo. O motivo? Alguns fãs não curtiram a direção que ela estava tomando nas novas músicas, conforme a cantora britânica publicava os singles que viriam a compor o disco “Crash”, lançado nesta sexta-feira.

Uma das estrelas pop menos ortodoxas dos últimos tempos, ela estava se mostrando cada vez menos experimental.

“Foi totalmente consciente. Tinha feito meu disco mais ‘do it yourself’ [‘How I’m Feeling Now’], em cinco semanas, durante a pandemia. Foi feito com as ferramentas que eu tinha à mão, de um jeito bem lo-fi. E sinto que, para meu quinto e último disco do contrato com a gravadora, eu queria abraçar totalmente a ideia de fazer um disco pop clássico de grande gravadora, sabe?”, diz a cantora.

Em “How I’m Feeling Now”, álbum pandêmico e espontâneo que Charli lançou em 2020, a cantora soava como manda a cartilha do hyperpop –o estilo de música popularizado por ela e outros artistas do selo inglês PC Music na última década. Ou seja, era fofo e esquisito, com harmonias doces e graves distorcidos, refrões grudentos e arranjos com chiados, sonoridades metálicas e vozes ultramanipuladas.

“Crash”, o novo álbum, começou a ser feito antes de “How I’m Feeling Now”, mas foi deixado de lado por não se adequar ao clima pandêmico, com uma pegada festeira mais aflorada, músicas feitas para preencher grandes espaços e letras sobre desejo sexual e emoções superlativas. Agora, conforme o mundo vive uma retomada das atividades sociais, é como se Charli, que sempre pareceu uma criatura vinda diretamente do futuro, quisesse se mostrar como alguém com os pés fincados no presente.

“Sempre amei música pop”, ela diz. “E sempre amei música experimental. Mas, assim, eu queria me distanciar daquele tipo de som que se tornou tão atrelado à minha identidade -estou falando do hyperpop, ou qualquer que seja o nome disso. Queria me afastar daquilo e fazer algo que passasse a sensação de algo inesperado. E acho que o que fiz definitivamente não é o que as pessoas estavam esperando, mas que eu acho muito bom.”

Referência ao filme homônimo de David Cronenberg, de 1996, “Crash” foi apresentado com o clipe de “Good Ones”, em que ela dança em cima de um caixão como se estivesse no próprio enterro. É a morte da Charli esquisita ao som de um EDM, a electronic dance music, que lembra Lady Gaga em seus melhores momentos.

“Queria deixar isso um pouco aberto para interpretação, mas o túmulo no vídeo de ‘Good Ones’ é tipo uma referência à morte da identidade prévia. E explorar a ideia de que as mulheres no pop podem ter novas identidades, podem ser vistas como multifacetadas. Infelizmente, sinto que às vezes dentro da indústria as mulheres são muito colocadas em caixas, nas quais elas podem ser uma coisa só. Podem ser a esquisita experimental ou a cantora mainstream que fica no topo das paradas, ou então a garota feliz, a garota triste –seja lá o que for.”

De certa forma, Charli precisou trocar a imprevisibilidade artística que a alçou à fama para poder voltar a ser imprevisível. “Também acho que é um bom desafio não só para mim, mas para a mídia e o público, para ver se eles conseguem acompanhar esse desafio e aceitar que você é um ser humano multifacetado.”

Na prática, isso significa que “Crash” traz acenos aos sintetizadores oitentistas de The Weeknd (como em “New Shape”) e ao balanço disco com linhas de baixo suingadas de Dua Lipa (“Yuck”), ainda que o Auto-Tune exagerado não tenha sido abandonado e haja ali resquícios do hyperpop. “Every Rule”, que retrata um relacionamento de Charli na vida real, é tão retrô que soa como se tivesse saído da trilha sonora de “Twin Peaks”.

No frigir dos ovos, “Crash” é grandioso, contagiante e segue algumas normas de pop contemporâneo, mas é sem dúvida feito por uma mente inquieta. Prova disso são as duas músicas em que Charli canta por cima de samples de clássicos do eurodance, praticamente sem mudar nada. “Beg for You”, parceria com a cantora japonesa Rina Sawayama, contém “Cry for You”, hit de 2005 de September, e “Used to Know Me” contém “Show Me Love”, que Robin S lançou em 1993.

“Queria entrar nessa tradição do ‘disco de grande gravadora’ e senti que não podia fazer isso sem explorar esse tipo de uso do sample, porque sinto que é uma coisa que está muito em voga na música pop atualmente. Essa foi a razão pela qual decidi usar essas músicas. ‘Show Me Love’, na realidade, veio depois que a música já estava pronta, mas eu estava com aquilo preso na minha cabeça –aquele ‘da da da da da’– e pensei ‘bem, e se eu simplesmente botar isso na música?’. E, deu certo, eles foram tranquilos para liberar.”

Se “How I’m Feeling Now” era íntimo e confortável, quase um diário sonoro da vida de Charli na pandemia, “Crash” é sobre estar pegando fogo, sobre “se sentir no limite”. Mas nem por isso ignora as vulnerabilidades de sua criadora.

“‘Crash’ mostra quão volátil posso ser. Vivemos num tempo em que se fala muito sobre empoderamento feminino, o que acho incrível. Acho que as mulheres querem escrever músicas sobre sobre ser uma mulher forte, estar no controle, e eu certamente quero fazer isso também. Mas às vezes não me sinto forte e nem no controle. Às vezes, me sinto completamente vulnerável e numa desordem total. Então, enquanto há músicas em que me sinto poderosa e dona da minha sexualidade e do meu sexo, também há canções no álbum sobre estar totalmente perdida -e acho que talvez por isso que ele soa mais ‘humano’. Talvez. Não sei.”

Charli -que, aliás, é colaboradora frequente de Pabllo Vittar e quase tocou no Lollapalooza Brasil de 2020– agora explora a faceta mais dançante e expressiva de uma artista que incorpora o encontro entre o que é extremamente estranho e o que é extremamente familiar –de certa forma, as próprias premissas da estética hyperpop.

“É engraçado e é algo natural para mim”, ela diz. “Na verdade, mais do que nunca, sinto que o underground já alcançou o mainstream e as duas coisas estão mais conectadas do que nunca. Acho que eu tinha dificuldades como essa dicotomia de, tipo, ‘quem sou eu?’, ‘sou uma garota pop ou sou uma artista mais disruptiva?’. Mas agora acho que as duas coexistem. E é meio fácil fazer as duas coisas ao mesmo tempo, porque sempre fui fã de música pop, mas também sempre amei, sei lá, ir a baladas e ouvir techno. Agora me sinto numa posição confortável de ser as duas coisas.”

“Crash” é também um tanto irônico, já que Charli sempre brincou com a ideia de uma caricatura de artista pop, e agora o novo álbum põe ela própria nesta posição. “Estou me forçando a ser o mais extremo [no sentido de ‘pop de gravadora’] que eu consigo. E, sabe, explorando os arquétipos do que é ser uma estrela pop em 2022. Não tenha dúvida, é algo muito divertido de se fazer.”

Por Lucas Brêda 

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