Milton Gonçalves brilhou no cinema, de Madame Satã a Natal da Portela

O essencial, porém, estava feito: a marca de Milton Gonçalves, ator e homem negro, morto ontem aos 88 anos de idade em decorrência de um AVC sofrido em 2020, permanecerá

Em 2003, Milton Gonçalves recebeu uma homenagem no Festival de Gramado: havia completado cem participações em filmes brasileiros. Milton, mineiro nascido em 1933, chegava aos 70 anos de idade e, com efeito, havia feito papéis grandes ou pequenos, melhores e piores, mas sobretudo havia afirmado a presença forte dos negros no cinema brasileiro, junto com o baiano Antônio Pitanga, como dois dos principais atores brasileiros de sua geração.

Eram personalidades distintas –Milton, sério, sisudo; Pitanga, falante, sempre sorridente. Suas origens também são diversas: o baiano Pitanga surge direto no cinema, do encontro com Luiz Paulino dos Santos e Glauber Rocha, no célebre ciclo do Cinema Baiano da virada dos anos 1950 e 1960.

Milton Gonçalves surge do contato com o grupo de Augusto Boal, onde conheceria os seus parceiros constantes: Gianfrancesco Guarnieri, Flavio Migliaccio e Oduvaldo Vianna Filho.

Com o primeiro deles faria sua estreia, em “O Grande Momento” (1958), de Roberto Santos. Não vem ao caso mencionar um por um os mais de cem filmes em que tomou parte. Entre eles, no entanto, não faltam os inesquecíveis. A começar de “O Anjo Nasceu”, de Julio Bressane, lançado em 1969, onde ele e Hugo Carvana interpretaram a dupla de bandidos que assalta a casa onde vivem Norma Bengell e Maria Gladys.

Se o primeiro filme ficou censurado e entrou para a galeria dos “marginais”, diferente foi o destino de “Macunaíma”, do mesmo ano, dirigido por Joaquim Pedro de Andrade, onde Milton faz Jiguê e acompanha o herói interpretado por Paulo José – o Macunaíma branco– e Grande Otelo – o Macunaíma negro.

Um papel mais exigente viria em 1974, quando Milton fez o marginal Madame Satã no notável “A Rainha Diaba”, de Antonio Carlos Fontoura. Ele conseguiu encontrar todas as nuances desse rei do crime carioca, famoso pelos modos delicados de homossexual e ao mesmo tempo pela violência e habilidade implacável no uso da navalha.
O prêmio de melhor ator no Festival de Brasília fez justiça a sua interpretação magistral. No mais, é nesse momento que tem participação ativa na grande era das novelas da Rede Globo.

Na década seguinte, novamente alternaria filmes de grande alcance com outros que se pode chamar “marginais”. Na primeira categoria entram “O Beijo da Mulher Aranha”, de 1985, de Hector Babenco, filme que chegou a concorrer ao Oscar –com efeito, deu o prêmio de melhor ator daquele ano a William Hurt–, onde Milton figurava como coadjuvante.

Antes disso, no entanto, reencontraria Gianfrancesco Guarnieri em “Eles Não Usam Black-Tie”, lançado em 1981, de Leon Hirszman (originalmente, a peça escrita por Guarnieri fora um sucesso no Teatro de Arena), um dos filmes-chave da Embrafilme no momento de ascensão do movimento operário e de decadência da ditadura civil-militar que vinha de 1964.

Nenhum desses papeis é capaz de igualar a riqueza e a força de sua interpretação no quase ignorado “Natal da Portela”, lançado em 1988, de Paulo Cesar Saraceni, onde faz o personagem-título, do bicheiro de Madureira e patrono da escola de samba Portela.

Sua carreira não terminou aí, mas o grande momento de sua geração, sim. A crise do cinema brasileiro, nos anos 1990 e o surgimento de uma nova geração não o impediram de reatar a parceria com Carlos Diegues, no belo

“Orfeu”, de 1999, de comparecer em alguns filmes internacionais ou mesmo no “Carandiru”, de 2003, de Hector Babenco.
O essencial, porém, estava feito: a marca de Milton Gonçalves, ator e homem negro, morto ontem aos 88 anos de idade em decorrência de um AVC sofrido em 2020, permanecerá.

Por Inácio Araújo

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