Série sobre João de Deus não ignora a fábula do ‘médium e o monstro’

Lançamento da Netflix explora a tríplice fronteira de curador, gângster e abusador

É difícil tolerar que um mesmo corpo hospede o afável doutor Jekyll e o sombrio senhor Hyde, como na trama de Robert Louis Stevenson. Mas acontece.

Quando centenas de casos contra João de Deus emergiram, três anos atrás, muitos se apressaram para decretar que ele era um charlatão que não tinha poder espiritual coisíssima nenhuma.

A fábula do “médium e o monstro” era um acinte, como se o homem que se aproveitou de sua guiança espiritual para estuprar mulheres fragilizadas fosse qualquer outro João que não o de Deus.

Deus é bom. João é mau, capaz de crimes horríveis contra mulheres, inclusive contra a própria filha, violentada desde a infância. Despir o personagem de qualquer autenticidade possível parecia ser uma questão de honra. Simplesmente não dá para aceitar que a mão que cura é também a que abusa.

Um dos méritos de “João de Deus – Cura e Crime”, lançamento da Netflix sobre a queda de um dos mais famosos curadores que o Brasil já teve, é não cair na ratoeira argumentativa de que o personagem-título é um embuste em tudo o que faz.

Talvez até seja. Não há estudo conclusivo sobre a eficácia de seus tratamentos. Até aqui, no entanto, não há evidências definitivas de que suas habilidades mediúnicas sejam fake news, ao menos para a régua do espiritismo.

A luz vem com a sombra, como aponta Anna Sharp, terapeuta que conhece o acusado há cerca de três décadas. Mesmo antes de o escândalo vir à tona, ela já percebia a dualidade do ególatra devoto ao dinheiro, mas que promovia “curas inenarráveis” e era generoso com os necessitados.

É muito mais assustador concluir que dons dessa magnitude não necessariamente partem de pessoas decentes. Pelo contrário, como o caso João de Deus ilustra tão bem.

Ele era o médium de Abadiânia, em Goiás, que acumulava histórias de curas e fotos com personalidade. Juliana Paes, Xuxa, Lula e Dilma. Até a apresentadora americana Oprah, que quando o conheceu achou que ia desmaiar, tamanha a força que sentiu em sua presença. “John of God.”

Então veio a primeira denúncia, depois mais outra, e outra. Logo, as acusações de assédio sexual apresentadas à Justiça chegaram a mais de 330, ainda que muitas já tivessem prescrito.

A série documental de Mauricio Dias e Tatiana Vilela espraia por quatro episódios a história de um homem que fez fortuna nos garimpos de Serra Pelada e, anos depois, lotava uma casa no interior goiano com promessas de mudar quadros clínicos ditos irreversíveis. Milagres, para usar o léxico religioso.

Se Abadiânia enriqueceu na garupa de sua fama, João Teixeira de Faria a controlava com técnicas de milícia. Há relatos sobre pousadas que pagavam a ele um salário mínimo para funcionar, taxistas que também precisavam desembolsar uma taxa para rodar.

Estar com ele era como estar com Michael Jackson ou um presidente da República, diz um contador da casa. O dólar e o euro passaram a correr solto, tantos eram os estrangeiros que vinham atrás de socorro. Para viajar para fora do país, o líder exigia assentos na primeira classe para toda sua comitiva.

O João médium promovia cirurgias espirituais em massa, como a da mulher que chegou até ele cega por um tumor supostamente terminal. Ele dizia incorporar do rei Salomão ao santo Inácio de Loyola, e também médicos de diferentes épocas e expertises.

Uma dessas entidades teria sido a responsável, e a cena descrita a seguir está capturada em vídeo, por enfiar uma tesoura e dar 21 voltas com ela na narina direita da adoentada. Pouco depois, estava curada.

Mesmo uma das mulheres mais vocais em denunciar o abuso sexual de João contra ela narra como procurou João com a mãe desenganada pelos médicos. Tinha câncer. Foi a Abadiânia e voltou com o diagnóstico de que o tumor era de repente benigno, o que pasmou toda a equipe médica.

O que aconteceu com Andrea, a filha, ilustra bem o modus operandi do João predador sexual. Seus alvos preferenciais eram em boa parte jovens bonitas e com alguém doente na família. Ele se valia de ameaças espirituais, como “você quer que sua mãe morra?”, e outras mais terrenas, com capangas intimidando quem ousasse se confrontar com ele por causa dos malfeitos.

Um estrangeiro que escreveu um email mencionando atividades criminosas em Abadiânia conta ter ouvido do dono de uma pousada mancomunado com o médium que um assassino de aluguel, nas cercanias, custava só R$ 300. Fica esperto.

A série não se preocupa em dar muitas nuances a João. É o monstro que estuprava filhas enquanto seus pais as aguardavam no cômodo ao lado. Que culpava entidades que recebia pelos abusos. Que ejaculava na mão de mulheres e dizia que seu sêmen era ectoplasma e fazia parte do tratamento espiritual delas.

Por fim, resta o João presidiário, um velhote acuado que, na cela, gritava quando se via no escuro, quando todas as luzes eram apagadas. Para a revolta de suas acusadoras, ele acabou indo para a prisão domiciliar na pandemia, o que levou a uma peculiar paridade -todos, o condenado e suas vítimas, trancados em casa.

João dá um breve depoimento no fim da série. Não há remorso ou mea culpa, só confiança de que sairia dessa. A Justiça o mandou de volta ao presídio um dia após a estreia da produção.

JOÃO DE DEUS – CURA E CRIME
Onde: Disponível na Netflix
Classificação: 16 anos
Produção: Brasil, 2021
Direção: Mauricio Dias e Tatiana Villela
Avaliação: Muito bom

Por Anna Virgínia Balloussier

 

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