Livro explica trechos da obra de Machado de Assis com referências ao direito
Jornalista Miguel Matos mostra em 'Código de Machado de Assis' como o escritor autodidata zombou da justiça
Machado de Assis era mulato, gago, epiléptico e pobre. “Tinha tudo para não dar certo”, diz o advogado Miguel Matos, editor do informativo jurídico Migalhas. Matos pesquisou a obra completa do maior escritor brasileiro e elaborou o “Código de Machado de Assis”.
O jornalista contextualizou trechos de romances, contos e crônicas com referências ao direito. É uma leitura agradável, com frases curtas. Os textos de Machado reproduziam a oralidade limitada pela gagueira, segundo Matos. O livro tem 116 códigos QR que remetem o leitor à imagem original dos artigos.
Filho de um caseiro e de uma lavadeira, Machado não conseguiu frequentar universidades. Critica a ambição pelo diploma, trampolim social no Rio de Janeiro do final do século 19 e início do 20.
Machado nunca exerceu a advocacia, foi autodidata. Mas dominava os procedimentos legais. Funcionário público, em 1873 elaborou pareceres e contratos. Em 1879, ajudou a reformar a legislação sobre terras devolutas. Defendeu a eleição direta, em 1865; o voto feminino, em 1877.
“Era o cronista do cotidiano, apreciava o júri”, diz Matos. Ele cita 80 personagens advogados, 38 bacharéis, 23 desembargadores e 18 juízes. Havia um rábula.
Através dos personagens, o bruxo do Cosme Velho zomba da Justiça. Relata traições de sócios e amantes; reclama da morosidade da Justiça e das chicanas. Com refinado humor, ironiza bacharéis e advogados, como revelam os exemplos a seguir.
Algumas Súmulas
O pai do jovem Nicolau, desejoso de ver o filho em boa posição literária, o despacha para a Academia de Direito de São Paulo em busca do diploma de bacharel. “Nicolau saiu sabendo pouco mais ou menos o que sabia antes de lá entrar.” “Uma loureira”, conto.
Dr. Matos “não ganhou o pecúlio que possuía professando a botânica ou a meteorologia, mas aplicando as regras do direito que ignorou até a morte”. “Helena”, romance.
Um advogado diz que só perdeu uma causa porque, nas vésperas de ganhar, o constituinte disse que desejava perdê-la. “Provei o contrário do que já tinha provado, e perdi… ou antes, ganhei, porque perder assim é ganhar.” “A mulher de preto”, conto.
Camacho era um advogado muito moço, uma vantagem a aproveitar, “enquanto ele não exige que lhe paguem a fama”. “Quincas Borba”, romance.
O advogado Dr. Valença compreendeu que “a primeira condição para merecer a consideração dos outros era ser grave”. Com abdome proeminente, “precisa ter os movimentos tardos e medidos”, diz o escritor. “As bodas de Luís Duarte”, conto.
O médico Simão Bacamarte monta um hospício, interna a população, inclusive Salustiano, o mais probo dos advogados. O alienista viu que “era perigoso deixá-lo na rua”. Um réu que falsificou um testamento confiou a causa a Salustiano. O advogado provou que o documento “era mais que verdadeiro”. Salustiano “deu provas de improbidade, o que o salvou”. “Não poderia ser internado como louco, pois era um advogado ‘machadianamente’ normal”, diz Matos. “O alienista”, conto.
Traições e Embargos
Há vários triângulos amorosos na obra de Machado. O advogado Matias descobre que a esposa o traiu com o sócio de banca. (“Último capítulo”, conto). Em outro triângulo, eis Camilo, funcionário público, no vértice, e o casal Vilela e Rita, na base. Advogado, ex-magistrado, Vilela no final mata Camilo. “O rapaz era abusado”, diz Matos. (“A cartomante”, conto).
Matos propôs desvendar o mistério de Capitu no romance “Dom Casmurro”: ela teve (ou não) um caso extraconjugal com Escobar, o melhor amigo de Bentinho?
Bentinho foi um bom advogado, “coisa raríssima nos causídicos machadianos”, diz Matos. O advogado se engraçou com a vizinha Capitolina, ou Capitu. No início, não tiveram filhos. Certa noite, Bentinho vai ao teatro sem Capitu. Voltou no fim do primeiro ato e topou com Escobar “à porta do corredor”.
Escobar disse ter vindo tratar “dos embargos”. Machado dá ao capítulo o título de “Embargos de terceiro”, recurso repetido no romance “A Mão e a Luva”, no qual Guiomar tinha três pretendentes.
Foi a chave para decifrar o código. “Capitu traiu Bentinho”, sentencia Matos.
Ao longo do livro, Miguel Matos conversa com o leitor, no mesmo estilo informal com que o site Migalhas trata dos fatos relevantes da Justiça.
Código Machado de Assis
Preço R$ 184,60 (592 págs.)
Autor Miguel Matos
Editora Migalhas
Por Frederico Vasconcelos