Filmes do caso Suzane von Richthofen coroam a onda dos true crimes no streaming
Filmes do caso Suzane von Richthofen coroam a onda dos true crimes no streaming
O clichê de que uma história tem no mínimo três versões –a minha, a sua e a que realmente aconteceu– é levado a sério nos filmes sobre o caso Richthofen, que quase 20 anos depois de ter chocado o país é contado em dois filmes que estreiam nesta sexta no Amazon Prime Video.
Num deles, Suzane, vivida por Carla Diaz, é viciada em maconha, impulsiva, briguenta e diz ser estuprada constantemente pelo pai, um dos motivos que a levaria a querer tirar sua vida. Noutro, seu pai nunca pôs um dedo nela, que só fuma por ser forçada por Daniel Cravinhos, seu então namorado.
Essas contradições são o fio condutor de “A Menina que Matou os Pais” e “O Menino que Matou Meus Pais”, os novos expoentes de uma onda de filmes, séries e podcasts sobre crimes reais brasileiros –ou true crimes, como ficou conhecido o filão.
É um gênero que faz sucesso no exterior há décadas, mas só ganhou força no Brasil nos últimos três anos, com obras que propõem reflexões sobre a sociedade violenta em que vivemos e exploram as falhas do judiciário, da polícia e da mídia.
No duo do caso Richthofen, o espectador ainda assume o papel de juiz, instigado a chegar a um veredito que diz muito sobre sua subjetividade, já que, para a Justiça, tanto Suzane quanto Daniel são culpados pela morte de Manfred e Marísia, crime pelo qual foram condenados a quase 40 anos de cadeia.
“Um dos maiores desafios, como atriz, foi evitar meu julgamento pessoal, independentemente do quão chocante o crime é”, diz Carla Diaz, que gravou os filmes no ano retrasado, antes do “Big Brother Brasil”.
“Um pequeno detalhe pode mudar toda a história. O interessante é procurar essas divergências entre as versões”, acrescenta Leonardo Bittencourt, intérprete de Daniel, que desde 2018 está em regime aberto, benefício que Suzane não conseguiu.
Para se prepararem, os atores buscaram inspiração até no tom de voz e na gesticulação dos criminosos em entrevistas e no julgamento que os condenou, além dos autos do processo que serviram de base para o roteiro, escrito pela criminóloga Ilana Casoy e o autor de romances policiais Raphael Montes, a mesma dupla do livro e da série “Bom Dia, Verônica”.
“Tínhamos o tempo todo a preocupação jurídica com o que podíamos ou não fazer, mas quem conta a história são eles próprios”, diz o diretor, Maurício Eça. “Só transformamos em dramaturgia o que eles disseram no tribunal”, afirma Montes.
“A gente reúne num mesmo diálogo informações dadas em depoimentos diferentes, mas não mudamos o que eles falaram, senão seríamos processados por contar mentira –a menos que Suzane fosse chamada de Anelise, sei lá”, acrescenta Casoy, que acompanhou o crime desde a reprodução simulada até o julgamento e já havia relatado o caso no livro “Casos de Família”.
Suzane tentou barrar os filmes, mas não conseguiu, numa decisão judicial amparada pelo Supremo Tribunal Federal, que rejeitou a tese do direito ao esquecimento, amplamente usada por criminosos para tentarem impedir sua aparição na mídia com a justificativa de que a exposição os impede de reconstruírem suas vidas.
A preocupação jurídica pode ser maior ainda para produções de tom documental, que usam acervos de jornais, rádio e TV em vez de reencenar o crime. Ivan Mizanzuk, o autor do podcast “Caso Evandro”, sabe bem disso.
A produção exigiu uma apuração meticulosa para elucidar o assassinato brutal de um garoto de seis anos em Garatuba, uma pequena cidade litorânea do Paraná, em circunstâncias políticas que levaram duas inocentes à prisão acusadas de bruxaria.
Os post-its enfileirados por cores e pregados à parede de seu escritório dão uma ideia do trabalho, que envolveu, com apoio de voluntários, a leitura dos milhares de páginas do processo e a transcrição de 34 dias de julgamento, além do resgate de entrevistas de acervo e da produção de outras tantas.
Tamanha dedicação, Mizanzuk diz, é para encontrar um recorte inédito sobre uma história contada à exaustão pela imprensa. Se não há novidade para o público, não há motivo para “revirar a dor e o sofrimento das pessoas” –para ele, ao menos. “Se for para abrir essa ferida, precisa ter uma função social relevante”, afirma.
Seu grande achado foi a versão sem cortes de uma fita que revela que as acusadas de estripar Evandro, Celina Abagge e Beatriz Abagge, foram torturadas pela polícia para confessar o crime. Hoje, elas buscam na Justiça a condenação dos torturadores.
Sua preocupação é a mesma da Rádio Novelo, que produziu “Praia dos Ossos”, um podcast sobre como a socialite Ângela Diniz, morta a tiros pelo namorado em 1976, foi de vítima à culpada pelo seu assassinato sob influência da polícia e de jornais.
Com manchetes estampando que “a infelicidade de uma mulher destruiu um lar”, Doca Street foi ovacionado ao sair do tribunal que o inocentou, numa decisão considerada absurda pelo Ministério Público, que pediu a anulação da sentença.
O podcast, porém, rejeita a alcunha de ativista. “Evitamos ser panfletários porque queríamos que pessoas não engajadas com o feminismo ouvissem. Não adianta pregar para convertidos”, diz Flora Thomson-DeVeaux, pesquisadora e coordenadora de produção do programa.
“O podcast tem a função de informar, mas principalmente de entreter. Através de uma história bem contada, a denúncia se faz sozinha”, acrescenta Branca Vianna, a presidente da Rádio Novelo.
Independentemente de como se vendem, os true crimes estão chegando com força às plataformas de streaming após fazerem sucesso como podcasts, que, por terem um custo de produção mais barato, deram o pontapé inicial ao gênero no Brasil.
Com quase 10 milhões de ouvintes, “O Caso Evandro” já virou livro por uma editora de porte, a HarperCollins, e série documental pelo Globoplay, que também tem no catálogo “Colônia”, uma série de ficção que se inspira no livro-reportagem “Holocausto Brasileiro”, de Daniela Arbex.
Um marco para a luta antimanicomial, a história mostra como gays, negros e pobres eram internados em massa e submetidos à tortura num manicômio de Barbacena, em Minas Gerais, onde nada menos do que 60 mil pessoas podem ter morrido.
Já a Netflix fez “Era uma Vez um Crime”, uma série documental sobre Elize Matsunaga, condenada por esquartejar o marido, e o HBO Max produz outra, ainda sem previsão de estreia, sobre o assassinato de Daniella Perez pelo ator que fazia seu par romântico na novela “De Corpo e Alma”, da TV Globo.
Também no forno e sem previsão de estreia está uma série de ficção sobre o assassinato de Isabella Nardoni, escrita pelos mesmos roteiristas dos filmes sobre o caso Richthofen.
Alguns crimes chegam a inspirar até mais de uma produção. É o caso de João de Deus, retratado tanto pela Netflix quanto pela Globo. Para Ana Carolina Lima, chefe de conteúdo do Globoplay, os true crimes brasileiros devem ganhar cada vez mais espaço. “Esses casos fomentam a curiosidade das pessoas. Além do desfecho, elas querem entender as motivações dos crimes, as investigações, o perfil do criminoso e da vítima.”
A visão de Lima encontra eco na do sociólogo Dmitri Cerboncini Fernandes, da Universidade Federal de Juiz de Fora, em Minas Gerais, que estuda como o jornalismo policial impacta a sociedade brasileira e vê nos altos índices de violência o motivo do interesse do público por crimes.
“Há 500 anos, o Brasil resolve os problemas sociais à base da violência. É o país da chibata, com a polícia que mais mata e mais morre. Somos um grande laboratório da violência, então as pessoas se identificam com esse tema”, diz.
Ele acredita, porém, que os true crimes são diferentes de programas como “Linha Direta”, que não propõem reflexões sobre as raízes da violência, geram medo e levam os espectadores a enxergarem o encarceramento em massa como solução.
Mizanzuk, do “Caso Evandro”, acrescenta que refletir sobre os crimes de uma sociedade é a melhor maneira de compreender suas nuances. “Temos que pensar onde falhamos para permitir que esses crimes acontecessem e como podemos impedir que ocorram novamente –o que são reflexões essenciais de um bom true crime.”