Entenda como a Marvel tece todo o seu universo a partir de leis da física cabeludas
Da lei da relatividade ao motor de dobra de Alcubierre, filmes articulam conceitos reais para dar coerência às tramas
Heróis e vilões com habilidades científicas não faltam no MCU, o famoso Universo Cinematográfico Marvel, do bilionário inventor Tony Stark ao adolescente nerd Peter Parker –ou Homem de Ferro e Homem-Aranha, nesta ordem.
Os superpoderes e as engenhocas quase nunca se parecem com o que existe em laboratórios de verdade, é claro, mas o fato é que os roteiristas frequentemente se inspiram em ideias de ponta da ciência real para imaginar a estrutura espaço-temporal do MCU.
(Se você ainda não assistiu aos principais filmes e séries da franquia, esteja avisado de que este texto contém alguns “spoilers”.)
“Espaço-temporal” é o termo mais adequado, aliás, porque a teoria da relatividade, formulada por Albert Einstein, mostrou que espaço e tempo podem ser vistos como uma coisa só. O cosmos tem três dimensões espaciais e uma temporal, e o que acontece no espaço afeta o tempo -e vice-versa. Quanto mais rápido um objeto se desloca, por exemplo, mais devagar o tempo passa da perspectiva dele.
Esse fato talvez ajude a explicar por que a Capitã Marvel, que parte para o espaço sideral durante os anos 1990 no filme que leva seu nome, volta para a Terra sem nenhum sinal de envelhecimento em “Vingadores: Ultimato”, que se passa no presente. O físico James Kakalios, professor da Universidade de Minnesota, nos Estados Unidos, e autor do livro “The Physics of Superheroes”, ou a física dos super-heróis, fez as contas. Se a heroína tivesse passado seis meses -da perspectiva dela- voando pela galáxia a uma velocidade próxima à da luz, 24 anos teriam transcorrido na Terra. Parece que tudo se encaixa, portanto.
O problema é que até a velocidade da luz acaba parecendo passo de tartaruga diante das distâncias abissais que separam a Terra dos outros sistemas solares -a estrela mais próxima de nós depois do Sol, batizada, não por acaso, com o nome latino de Proxima Centauri, está a 4,24 anos-luz daqui.
Ou seja, até a luz leva mais de quatro anos para viajar entre o Sistema Solar e a estrela. Por isso, se heróis como os Guardiões da Galáxia realmente quisessem fazer jus ao nome da equipe, eles precisariam cruzar a galáxia a velocidades muito superiores à da luz.
Em situações normais, a teoria da relatividade proíbe isso -a velocidade da luz jamais pode ser alcançada por objetos físicos em deslocamento. Mas alguns cálculos, também usando o arcabouço teórico da relatividade, mostram que seria possível contornar o problema.
Um dos meios para isso é abrir os chamados buracos de minhoca -túneis no espaço-tempo que “cortariam caminho” entre dois pontos muito distantes. A ponte do Arco-Íris, ou Bifröst, que liga o reino de Asgard à Terra nos filmes do Thor, é descrita como um desses objetos no MCU.
Outra possibilidade, lembra Caio Gomes, físico e divulgador científico no canal O Físico Turista do YouTube, é o chamado motor de dobra de Alcubierre -assim chamado por ter sido proposto inicialmente pelo físico teórico mexicano Miguel Alcubierre Moya. Na concepção de Alcubierre, o sistema funcionaria contraindo o espaço na frente da nave e o expandindo atrás dela.
“Em ambos os casos, tanto no do motor de dobra quanto no dos buracos de minhoca, você precisaria do que os físicos chamam de matéria exótica, algo que tem energia negativa, em vez de energia positiva, como a matéria normal que conhecemos”, afirma.
Esse tipo de matéria não é chamada de exótica por acaso. Até hoje nada parecido foi detectado no universo. Mas Gomes lembra que a mecânica quântica, o ramo da física que estuda os domínios minúsculos das partículas elementares, já mostrou a possibilidade de que fenômenos nessa escala produzam algo do tipo. “Mas pegar e manipular essa energia negativa é que é muito complicado. É isso que a gente não sabe como fazer.”
“Doutor Estranho” e a série de TV “Loki” brincam com outro conceito ainda mais cabeludo -a ideia de que existiriam infinitas realidades paralelas à nossa, o chamado multiverso. A ideia é que isso explicaria o fato de que as características fundamentais do nosso universo parecem ter sido “reguladas” com precisão para permitir o surgimento de estrelas, planetas e seres vivos -com a existência de infinitos outros universos, cada um deles poderia ter parâmetros fundamentais muito diferentes do nosso, nada amigáveis à existência, mas um deles acabaria inevitavelmente “ganhando na loteria” e dando origem a nós.
Na prática, porém, é muito difícil tentar verificar a existência de outros tipos de cosmos. “A ideia mais simples é que só podemos dizer algo sobre o universo em que estamos, porque não sabemos se existem outros e, se existem, não temos ideia de como encontrar uma única evidência que seja de eles existirem”, resume Elvis Camilo, brasileiro que tem doutorado em astrofísica e é pesquisador da Universidade Católica de Louvain, na Bélgica.
Ele pede, no entanto, para que ninguém veja isso como uma crítica ao MCU. “Sou fã da Marvel”, elogia. “Os enredos são bem-feitos.”
Por Reinaldo José Lopes