Animações japonesas atraem público brasileiro no streaming, apesar de pirataria no segmento
Em 2002, "One Piece" teve seu primeiro volume publicado no Brasil
De 2002, quando “One Piece” teve seu primeiro volume publicado no Brasil, a 2021, quando a animação estreou seu milésimo episódio –neste sábado, em transmissão simultânea mundial pelo streaming Crunchyroll–, uma geração de fãs acompanhou a saga como pôde.
Matheus Mendonça, 33, se entusiasmou pela turma de piratas que protagoniza a história há quase 20 anos, quando comprou o gibi em uma banca de Recife. Na mesma época, Felipe Montes, 36, derramou a primeira lágrima de emoção no trajeto da ponte Rio-Niterói ao concluir o primeiro capítulo do quadrinho do qual hoje é o tradutor no Brasil.
Mas enquanto no Japão, até hoje, os otakus, fãs de animes e mangás, podem adquirir toda semana uma revista e acompanhar as HQs-folhetim –e “One Piece” sai em uma dessas desde 1997–, no Brasil, muitas histórias chegavam tarde demais para o ritmo da internet.
“É difícil ver pessoas da minha idade que não tenham entrado em contato com anime e mangá pela via da pirataria”, diz Montes. Depois de ler o que havia da série no Brasil, ele, que estudava japonês, comprou os mangás na língua original antes de partir para os meios não-oficiais para assistir a série a partir de 2003. Essa paixão rendeu até a tradução de alguns capítulos de forma amadora, os “scans” –feita sobre páginas escaneadas, em péssima qualidade.
Já quem queria acompanhar a animação recorria aos “fansubs”, legendas criadas pelos fãs. Mendonça, conhecido na internet como Matheus “Joy Boy”, alimenta o canal All Blue no YouTube há nove anos, onde traz desde análises semanais dos capítulos de “One Piece” até leituras dramáticas para mais de 340 mil inscritos.
Seu trabalho serve como entrada para toda uma geração que ainda desconhece Luffy, o rapaz que pode se esticar como borracha e que protagoniza a jornada em busca do tesouro One Piece.
Diferente dos ninjas de “Naruto”, os traços “orientalizados” não são dominantes na franquia. “Primeiro achei uma coisa meio ‘Turma da Mônica'”, lembra Mendonça. Ele conta que seus irmãos mais novos apelidaram Luffy de “Chico Bento japonês”, já que ambos usam chapéu de palha. Curiosamente, o próprio Eiichiro Oda, autor do mangá, confirmou que, se “One Piece” se passasse nesse mundo, o pirata seria brasileiro.
“‘Gentem’, eu nem sabia disso. Deve ser um dos motivos pelo quais me apaixonei de primeira”, diz a cantora Elza Soares, que em 2020 tuitou: “‘One Piece’ é bom sim, assistam”. “Eu conheci pela minha bisneta Maria Eduarda. Ela ama animes e assistíamos juntas. Depois peguei gosto e fui embora sozinha”, conta a cantora do milênio. “Já me inspirei nele para fazer alguns penteados, inclusive. Amo!”
Mas o que há de tão encatador no desenho? O fato é que a trama simples, de um garoto que reúne uma tripulação para ir em busca de um tesouro inimaginável, se desdobra em uma narrativa épica em que piratas são um símbolo de liberdade e de luta contra o establishment em um universo grande demais para que os leitores nadem em águas rasas.
“Existe uma sensação de que ainda dá tempo de presenciar um clássico”, resume Leonardo “Kitsune” Camargo, do portal Geek Here e apresentador do podcast Kitsune da Semana. “Há milhares de opções de anime e mangá, mas para começar basta ir para edição um”, recomenda ele, que também já editou quadrinhos da Marvel, e sabe que escolher uma HQ dos X-Men para começar não é tarefa fácil.
“‘One Piece’ já é um dos maiores mangás e animes da história em todos os sentidos”, diz sobre a série que já passou dos 1.030 capítulos em quadrinhos e cujos volumes já venderam quase 500 milhões de cópias.
E essa base de fãs só aumenta com a presença do anime completo no Crunchyroll –um streaming de nicho com mais de 900 séries no catálogo e um esforço contínuo para exibir produções ao mesmo tempo que no Japão, se apresentando assim como uma alternativa para a pirataria, ainda muito difundida e de fácil acesso–, e mais de cem dos seus episódios na Netflix, com o diferencial da dublagem. É um décimo do que foi produzido desde 1999, mas mesmo isso já o torna mais acessível.
“A disponibilidade no streaming faz uma diferença enorme, e consegue tornar o gênero mais popular que na TV a cabo”, diz Camargo. Ele ressalta, porém, que o poder da televisão não deve ser subestimado. Ele trabalhou no canal Loading, que funcionou de dezembro de 2020 a maio deste ano com conteúdos inéditos. Exibindo animes em horário nobre, a rede chegou a se classificar como oitava maior TV aberta do país no ranking da Kantar Ibope de abril.
Quando Camargo virou apresentador do “falecido”, viu suas redes, até então dominadas pelo nicho, cheias de novas arrobas que acabavam de conhecer “Attack on Titan”, outro fenômeno. “O público da Loading não era quem já conhecia anime, mas públicos de classe C e D que só tinham TV aberta e estavam assistindo anime pela primeira vez”.
Outro caso é a popularidade de séries como “Naruto” e “Dragon Ball”, que explodiram após exibição na TV aberta. “‘Naruto’ passou no SBT, pegou muito a periferia e tem um impacto forte lá até hoje. Mas a periferia não está tão a par do ‘One Piece’, por exemplo, que passou todo errado por aqui”. Esse “todo errado” quer dizer poucos episódios e com trechos cortados.
“Acredito que o público brasileiro se vê cada vez mais reconhecido. Temos canais de TV voltando a apostar no gênero, e produtos de várias séries, incluindo ‘One Piece’, sendo vendidos em grandes varejos”, afirma Kelsey Jenkins, relações públicas da Crunchyroll na América Latina. “Temos um grande foco em ‘simulcasts’ –séries exibidas logo após a estreia no Japão”, ela acrescenta, dizendo que hoje a plataforma exibe mais de 30 séries semanalmente dessa forma.
Em paralelo ao nicho, os streamings viram nos últimos anos essa demanda crescer e já organizam melhor esses lançamentos. Enquanto no Brasil a Amazon Prime Video conta com pouco mais de 70 animações do Japão, a Netflix já soma cerca de 180 títulos do tipo, entre obras licenciadas e produções originais, tanto séries como longas, segundo dados do Just Watch.
Ainda assim, Camargo lembra do que a comunidade otaku chama de “cemitério de Netflix” –séries que só chegam ali depois de completas no Japão, sua popularidade já esfriada depois que quem queria assisti-las já o fez por meios ilegais. A nova temporada de “JoJo’s Bizarre Adventure” –outra série longeva, publicada desde 1987, e com uma série animada desde 2012– é uma exceção, pois a partir de dezembro chegará em episódios semanais à Netflix.
Outro jeito de trazer espectadores é a criação de live-actions a partir de séries de sucesso, como a recente “Cowboy Bebop” e as vindouras adaptações de “Yu Yu Hakusho” e da própria “One Piece”.
A novidade não reside em ter pessoas reais interpretando os personagens –isso é prática antiga no Japão e em Hollywood. Mas os ianques, até agora, fizeram mais bombas, como “Dragonball Evolution” e “Death Note”, que não respeitavam as raízes orientais. Para Montes, as adaptações japonesas, pelo contrário, “não têm medo de ser felizes”. “Meu maior receio é que [as adaptações americanas] sejam só ‘cool’. E ‘One Piece’ tem uma ‘vibe’ boba, no bom sentido.”
Pode ser mais um tiro n’água, mas as expectativas são outras. “Essa década de 2020 pode ser para o anime e mangá o que os anos 2010 foram para o Universo Cinematográfico Marvel”, aposta Mendonça, fazendo a comparação com os heróis que saíram do gueto geek para cair nas camisetas de grandes varejistas. “É uma validação e o público otaku quer isso”, opina Camargo.
One Piece
Japão, 1999. Autor: Eiichiro Oda. Com Mayumi Tanaka, Akemi Okamura, Kazuya Nakai. 10 anos.
Disponível no Crunchyroll e na Netflix