Ver a morte como espetáculo é sintoma do adoecimento social, diz juíza sobre caso Lázaro

Para juíza e escritora Andréa Pachá, 57 anos, sociedade não entende punição penal como resposta à violência

“Defender prisão, processo e contraditório não é defender criminoso, nem aderir à violência, mas compreender que a civilização é a alternativa à barbárie. Celebrar caçadas, execuções e vingança pode saciar o ódio e aplacar o medo, mas nunca será justiça.”

As palavras são do perfil do Twitter de Andréa Pachá, 57. A juíza e escritora faz menção à morte de Lázaro Barbosa, conhecido como o serial killer do Distrito Federal, morto pela polícia nesta segunda-feira (28/6), após 20 dias de buscas.

Em entrevista à reportagem, Pachá avalia que em casos como o de Lázaro, existe um sentimento de injustiça na sociedade, que busca a resposta no endurecimento das leis penais.

“O problema é que, quando você começa a tratar a resposta da Justiça como uma necessidade de vingança, você nunca vai conseguir chegar à justiça, porque você responde à linguagem da violência com a própria violência”, diz a juíza, ressaltando que não cabe ao Estado promover a violência.

Pergunta – Em casos como o de Lázaro, de um criminoso acusado de matar uma família e estuprar mulheres e que ficou conhecido como um serial killer, o sentimento de vingança se sobrepõe ao de justiça?

Andréa Pachá – Eu acho que tem uma percepção muito majoritária na sociedade de que a forma de punição criminal não responde à violência. Então existe uma demanda pelo recrudescimento das normas penais. Você vê que a cada crime bárbaro a sociedade reage pedindo mais punição, mais prisão, mais pena, porque nós não encontramos uma forma de responder à violência satisfatoriamente, de maneira que aplaque esse sentimento de injustiça. O problema é que, quando você começa a tratar a resposta da Justiça como uma necessidade de vingança, você nunca vai conseguir chegar à justiça, porque você responde à linguagem da violência com a própria violência, e esse não é o papel do Estado.

Lamentavelmente, o que nós temos visto é que mesmo com o recrudescimento das penas, há violências que não são interrompidas pela ameaça da prisão. O criminoso comete o crime apesar da norma penal. Qual é a solução pra isso? Ao meu ver, a solução para isso não pode ser o extermínio, porque, se nós chegamos até aqui, foi por uma construção civilizatória. Qualquer retrocesso nesse sentido é desconstruir essa rede. Quando se fala na necessidade de investimento na educação, na cultura, na saúde, não é retórica. Ninguém transforma uma sociedade só pelo recrudescimento das leis penais.

E o recrudescimento das leis penais, no caso, não é a saída que você enxerga?

AP – Não é que eu não enxergo, é que tem se mostrado inapropriado. Apesar do recrudescimento, apesar da população criminal que nós temos, ainda assim a violência persiste. E há vários fatores que impactam a violência.
Qualquer discurso hoje que você faça, qualquer discurso racional de reflexão sobre o combate à violência é remetido para um grupo dos que defendem criminosos, dos que defendem a violência. E isso não é verdade. Estigmatizar a proteção normativa, estigmatizar a rede de proteção de direitos humanos e fundamentais não resolve a questão da violência

Essa confusão entre defender o direito de defesa, os direitos humanos e defender o crime parece se acentuar cada vez mais.

AP – Cada vez mais porque você nem começa a discutir. Você fala “vamos pensar por que a violência chegou até aqui, por que tem aumentado” e respondem “ah, lá vem ela defender bandido”. Esse tipo de reação impede que a discussão alcance um ambiente racional.

Durante a operação, houve relatos de intolerância religiosa por parte dos agentes de segurança e Lázaro terminou morto em um cerco em que os policiais atiraram 125 vezes. Essa caçada pode ser vista como uma situação em que o Estado promove a violência?

AP – Essa violência faz parte da cultura da sociedade em que vivemos. O que eu vejo é que há uma naturalização da violência, uma aceitação da violência e uma romantização da violência. Toda legitimação só acontece quando a sociedade aceita como natural. A violência naturalizada fica banal. É como se não tivesse nenhuma importância. E é uma pena a gente não aprender com esses eventos, porque acaba se transformando em espetáculo o que poderia ser uma matéria para discussão civilizatória para melhorar o ambiente social em que a gente vive.

Pensando na população e no criminoso, podemos dizer que o Estado respeitou os direitos e cumpriu seu papel com ambos?

AP – Eu não consigo fazer um contraponto tendo de um lado a polícia e do outro o bandido, não acho que seja binária essa relação da violência. Acho que isso envolve um comportamento e uma aceitação do grupo social.

É um fio muito tênue de você conseguir observar toda a rede de proteção dos direitos humanos que foram duramente construídos ao longo desse século e [ao mesmo tempo] enfrentar a violência. Então, qual o limite da atuação? É possível avaliar? O controle existe. Claro que se há excesso, o excesso tem que ser identificado, tem que ser punido. O que não se pode partir é da lógica binária de que de um lado estava a polícia e do outro o bandido. A complexidade da violência era muito maior do que isso.

O que mais me incomodou não foi a violência do policial, não foi a violência do criminoso, não foi a forma trágica com que esse evento chegou ao final. O que mais me incomoda é ver a morte transformada em espetáculo, eu acho que isso é um sintoma de adoecimento social.

RAIO X

Andréa Pachá, 57, é juíza de Direito da Vara de Órfãos e Sucessões do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, é mestre em Saúde Pública e Direitos Humanos pela Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) e é formada em direito pela UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro). É autora dos livros “A vida não é justa”, “Segredos de Justiça” e “A vida são os outros”, da Editora Intrínseca.

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