Apenas São Paulo, Curitiba e o DF têm ampla distribuição de absorventes para população de rua

Nesses locais, há fornecimento por meio das equipes de abordagem social e do programa Consultório na Rua

O veto do presidente Jair Bolsonaro (PL), em outubro de 2021, ao projeto de lei que previa a distribuição gratuita de absorventes acendeu um alerta para as prefeituras das principais capitais do país em relação à distribuição gratuita desses itens.

No entanto, apenas duas capitais, São Paulo e Curitiba, além do Distrito Federal, realizam a distribuição do item de higiene menstrual para a população de rua de forma ampla.

Isso significa que a oferta de absorventes não está restrita às unidades socioassistenciais. Nesses locais, há também o fornecimento por meio das equipes de abordagem social e do programa Consultório na Rua (no caso do Distrito Federal e de São Paulo).

O restante das capitais realiza a distribuição só nos centros de acolhimento ou então nem possui políticas relacionadas ao problema da pobreza menstrual. Há ainda três capitais, Boa Vista, Natal e Porto Velho, que possuem um projeto aprovado, mas que ainda não está em vigor.

Os dados foram levantados pela reportagem por meio de informações obtidas junto às prefeituras das capitais e ao governo do Distrito Federal.

A proposição vetada por Bolsonaro, porém, era mais ampla do que a realizada hoje nas cidades: incluía a distribuição gratuita de absorventes para estudantes de baixa renda matriculados em escolas públicas, mulheres em situação de rua, em extrema vulnerabilidade, presidiárias, apreendidas e cumprindo medidas socioeducativas.

Assistentes sociais, médicos e pessoas que vivem em situação de rua relatam que, além da falta de acesso aos itens de higiene, a pobreza menstrual é agravada pela falta de acesso a banhos e roupas íntimas.

Giovanna Almeida Novaes, 21, viveu embaixo do viaduto Antônio de Paiva Monteiro, na zona leste de São Paulo, até o início de fevereiro. Desde então, ela e outras dez famílias se mudaram para uma ocupação próxima dali.

Além do conforto, um dos principais motivos que ocasionaram a mudança foi a falta de acesso a água. “Tava muito difícil para a gente, quando chovia, molhava tudo”, lembra.

Sem banheiro, eles usavam baldes ou saquinhos. “Como o viaduto fica em frente a um posto de gasolina, dá vergonha de passar com o balde. A gente esperava um pouquinho ou então jogava [o conteúdo do balde] de manhã bem cedinho ou mais à noite.”

A assistente social Fernanda Almeida, que trabalha no Caps (Centro de Atenção Psicossocial), analisa que a condição das pessoas que menstruam e vivem na rua exige a disponibilidade de banheiros públicos e acesso a água.

Almeida reforça ainda que a questão do absorvente precisa ocupar um espaço maior no campo da saúde pública.

“Pode ser que a pessoa receba o absorvente, mas muitas vezes não tem onde trocar ou, ainda, não tem uma calcinha limpa”, diz ela, que compara que a mulher que vive na rua, muitas vezes, tem a mesma condição sanitária de alguém do século 19.

Há, porém, quem discorde da comparação. Marta Marques, assistente social que atua no programa Consultório na Rua, diz que a situação de quem menstrua e vive nas ruas de São Paulo melhorou quando a prefeitura começou a realizar a entrega de absorventes em novembro de 2021.

A estimativa é de que, a partir desta ação, o município seja responsável por 5.109 mulheres que vivem em situação de rua –o número se baseia no censo publicado no início de 2022. “Hoje sentimos falta de kits de higiene [com itens como sabonete e xampu], mas recebemos muitos absorventes”, diz Marques.

Mesmo entre as capitais que possuem um programa com capacidade de fornecer absorventes para quem precisa, como na capital paulista, há relatos, porém, de pessoas que ainda dependem de doações.

Nas ruas e em ocupações no município de São Paulo, pessoas que menstruam relatam desconhecer a distribuição realizada pela prefeitura. São dependentes de entregas de projetos sociais e contam que, quando falta essa ajuda, recorrem a retalhos de roupas, papel higiênico, jornal e até papelão.

Nubia Renata Martins, 43, vive em uma ocupação no centro da cidade. Ela conta que não tem como garantir absorvente todo o mês: mesmo quando consegue doação, o pacote não é o bastante para todo seu ciclo. Por isso, ela usa panos e camisetas velhas.

“Quando precisa, a gente tem que usar, não tem o que fazer. Lavo uma camiseta branca com cândida porque a gente é mulher e tem que se cuidar”, afirma.

Marcela Fernandes, 38, vive em uma tenda improvisada em frente ao Pátio do Colégio, no centro da capital paulista, com dois dos seus nove filhos. Ela havia conseguido uma vaga para sua família em um albergue, mas, quando seu marido bebeu muito, eles foram expulsos.

Para se lavar e trocar, ela usa o banheiro da Sé. Por ter um fluxo menstrual intenso, não é raro precisar usar fraldas para conter o sangue.

“Não é sempre que eu consigo doação e eles [prefeitura] não ajudam com nada”, diz ela. Fernandes conta que conseguia itens de higiene por meio de grupos de WhatsApp, mas, como seu celular foi roubado, tem enfrentado ainda mais dificuldade.

Procurada, a prefeitura não explicou se o projeto possui algum empecilho para que essas pessoas tenham acesso a absorventes. A gestão municipal afirma que “as equipes do Consultório na Rua trabalham em áreas específicas e identificadas como de maior vulnerabilidade social”. “A entrega ocorre, principalmente, em cenas de uso de drogas, centros de acolhida e pontos de áreas livres”, afirma ainda.

Fora a distribuição da prefeitura, as doações ocorrem principalmente por meio de iniciativas como Fluxo Sem Tabu e Projeto Absorver. Durante as entregas, voluntários abordam as pessoas em situação de rua e veem as cenas se repetirem: segundo eles, todos querem o kit –mesmo crianças pedem para levar para suas mães e irmãs. Em geral, cada conjunto possui itens como absorvente descartável, calcinha, sabonete e lenços umedecidos.

Para além dos absorventes descartáveis, há quem acredite que a distribuição de materiais como coletores menstruais (pequenos copos de silicone que são usados dentro da vagina) ou até mesmo calcinhas e cuecas absorventes (feitos de tecido especial, que evita vazamentos) seria uma solução, uma vez que só seria necessário que cada pessoa recebesse o insumo uma vez.

No entanto, a ginecologista Mariana Barroso, que trabalha à frente do projeto Mulheres Sem Medo, capitaneado pela ONG Médicos do Mundo, avalia que esses outros métodos não seriam adequados.

“O coletor menstrual e a calcinha absorvente não funcionam porque a maioria não têm acesso a limpeza para higienizar esses materiais. O coletor, por exemplo, funcionaria se elas tivessem como ferver e lavar”, diz.

Para a socióloga e antropóloga Fraya Frehse, professora da FFLCH-USP (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo), o momento político do país não contribui para a elaboração e execução de políticas como a de distribuição de absorventes.

“Esse fenômeno sinaliza para a educação sexual, para que possamos saber como fazer. A educação sexual, por exemplo, conseguiria ensinar por que a mulher sangra e, para fazermos uma política de acesso”, diz.

Entre outras medidas, o governo Bolsonaro se posiciona de forma contrária a políticas que incentivem a educação sexual para jovens e adolescentes. O presidente chegou a sugerir que pais rasgassem páginas sobre educação sexual da “Caderneta de Saúde do Adolescente”, emitida pelo Ministério da Saúde durante o governo Lula.

Por Isabella Menon, Victoria Damasceno e Karime Xavier 

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