Tese do marco temporal é interpretação forçada e afronta Constituição, diz advogado indígena
Supremo retoma julgamento nesta quarta (1°)
O STF (Supremo Tribunal Federal) retoma nesta quarta-feira (1º) o julgamento que discute a demarcação de terras indígenas e que deve decidir sobre o marco temporal. Segundo a tese, indígenas só podem ter direito sobre terras que já estavam ocupadas por eles até 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição.
Para Luiz Eloy Terena, advogado indígena e coordenador jurídico da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), que atua como um dos amigos da corte no processo, a tese do marco temporal deve ser declarada inconstitucional.
“A tese do marco temporal é uma interpretação forçada da Constituição e ela afronta o direito constitucional”, afirma.
“A Constituição para nós foi bem clara ao adotar a teoria do indigenato, que é esse direito originário. O segundo aspecto é que a Constituição trouxe o conceito de terra tradicionalmente ocupada. Nele, existem quatro elementos que caracterizam a tradicionalidade, e nenhum desses elementos trabalha com a temporalidade.”
Há também na Câmara um projeto de lei (PL 490) em tramitação que busca instituir o marco temporal. “Se o PL 490 for aprovado, no outro dia nós ingressaremos no STF com uma ação direta de inconstitucionalidade”, afirma Eloy.
PERGUNTA – O Brasil é signatário da Convenção Organização Internacional do Trabalho, que prevê a consulta prévia a povos indígenas em caso de medidas legislativas que podem afetá-los. No caso do PL 490, os povos indígenas deveriam ter sido consultados?
ELOY TERENA – A convenção é clara, todas as vezes que o Poder Legislativo forem capazes de afetar diretamente os povos indígenas, deve ser precedida de uma consulta.
No caso da tramitação do PL 490, não existiu esta consulta, tampouco existiu audiência pública. Sabemos que audiência pública não é consulta, que oitiva não é consulta, mas nem o direito à audiência, ou de participar, de opinar nós tivemos. Pelo contrário, quando ela foi aprovada na CCJ, os povos indígenas ficaram do lado de fora. Esse é um dos aspectos que a gente suscita como inconstitucional.
E como isso deveria ocorrer dentro do processo Legislativo?
ET – Não temos um desenho, o que nós temos são princípios que devem orientar esta consulta. Tem que ser de boa-fé, de forma livre, plenamente informada e tem que se fazer por meios pelos quais os povos indígenas possam entender e se fazer entender.
Há uma movimentação no setor ruralista para que o STF adie mais uma vez o julgamento do marco temporal. Quais as consequências diretas para os povos indígenas de um novo adiamento?
ET – Enquanto perdura esse estado de coisa de indecisão, nós temos no Brasil todos os procedimentos demarcatórios paralisados, aguardando este julgamento. Então o efeito é nefasto. Só em Mato Grosso do Sul nós temos mais de 75 comunidades indígenas que estão acampadas à beira de estrada ou de fazenda aguardando.
Quanto mais o Supremo adia este julgamento, mais eles ficam à margem do seu direito ao território e os fazendeiros ganham tempo para continuar explorando. Neste caso, o tempo atua contra os povos indígenas.
Se o STF declarar o marco temporal inconstitucional, o Congresso poderia aprovar o marco temporal, com base na separação entre os Poderes?
ET – Até poderia, mas seria já um texto natimorto. Esse processo tem repercussão geral, e a decisão que o Supremo tomar ali é vinculante. Então, na medida em que a Câmara legisla contra um entendimento que o pleno do Supremo entenda que é inconstitucional, muito provavelmente ele será questionado no STF e será declarado inconstitucional.
A APIB já se manifestou publicamente. Se o PL 490 for aprovado, no outro dia nós ingressaremos no STF com uma ação direta de inconstitucionalidade.
Considerando que há decisões anteriores do Supremo sobre o marco temporal, qual o significado deste julgamento?
ET – Por que que nós queremos este julgamento? Porque vai ser a primeira vez que o pleno do Supremo vai se debruçar sobre este tema. Ainda não temos um posicionamento do Tribunal. O que nós temos são decisões de alguns ministros.
O relator do PL 490 na CCJ apontou que o projeto consolida um entendimento “amplamente majoritário” do STF, com base na votação do caso Raposa Serra do Sol. Na sua avaliação, é possível dizer isso?
ET – Não. Primeiro porque o marco temporal não foi aplicado nem no caso da Raposa, não foi objeto de discussão naquele caso. Segundo, porque o marco temporal entra nas condicionantes do caso Raposa. Só que em 2013 o tribunal falou ‘essas condicionantes não são vinculantes’. O tribunal deixou bem claro.
No PL 490, o relator usa de má-fé, porque ele pega decisões esparsas. Ele pega uma decisão do Gilmar Mendes, pega uma decisão do Teori Zavascki, do Celso de Mello e vende isso como se fosse um posicionamento consolidado, o que não é.
Como avalia a argumentação jurídica usada para justificar que o marco temporal seria constitucional?
ET – Os que defendem essa tese do marco temporal se valem de uma interpretação gramatical, que é do ponto de vista jurídico, a interpretação mais fraca.
Eles dizem que a Constituição trabalhou com o verbo ocupar no presente e leem o artigo 231, [que afirma que] ‘são reconhecidos os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam’, e falam: ‘Viu esse verbo ocupar está no presente?’. A Constituição para nós foi bem clara ao adotar a teoria do indigenato, que é esse direito originário.
O segundo aspecto é que a Constituição trouxe o conceito de terra tradicionalmente ocupada. Nele, existem quatro elementos que caracterizam a tradicionalidade, e nenhum desses elementos trabalha com a temporalidade, [eles] trabalham com elementos territoriais, a forma como aquele povo se relaciona com a terra.
A tese do marco temporal é uma interpretação forçada da Constituição e ela afronta o direito constitucional.
De acordo com o PL 490, as exceções ao marco temporal seriam os casos em que se pudesse comprovar que havia disputa física ou judicial pela terra em 88. O que elas significam?
ET – Além de os povos indígenas sofrerem todo o tipo de violação, você joga para eles o ônus de comprovar que eles foram violentados. Antes de 88, existia na Funai a guia de trânsito, que era um documento que todo indígena precisava para poder sair da aldeia. Quer dizer, o indígena não tinha nem o direito de ir e vir, ele era tutelado pela Funai. Como podia exigir que tivesse com uma ação judicial no fórum protocolada?
Alguns dos argumentos trazidos inclusive por advogados é de que haveria perambulações de indígenas e que, a partir delas, os povos iriam aumentando as terras que poderiam reivindicar. Além disso, apontam também que não ter nenhum tipo de marco temporal implicaria que todo Brasil poderia ser reivindicado como terra indígena. Como o sr. avalia este tipo de argumento?
ET – Eles acionam a opinião pública contra os indígenas. Isso é uma falácia. Primeiro porque os povos indígenas não estão reivindicando todo o Brasil. Segundo porque a própria Constituição não garante. Antes de 88, o requisito para se demarcar era a imemorialidade, ou seja, terras imemoriais, antigas.
O requisito que a Constituição de 88 trouxe é a tradicionalidade, que é a forma como aquele indígena se relaciona com aquele território. Então é a habitação permanente, atividade produtiva, preservação ambiental. Esse argumento por si só, de perambular e virar terra indígena, não se sustenta.
Nós sabemos que quando os estudos antropológicos são realizados a questão do deslocamento dos indígenas dentro do seu território é levada em consideração.
Mas nem todos os povos são assim, uns são mais nômades outros são mais fixos. E mesmo esses mais nômades, são mais nômades dentro da sua territorialidade. O vínculo territorial é uma coisa muito forte para os indígenas.
De que modo a política do governo Bolsonaro e o PL 490 retomam a lógica de políticas que buscavam a integração e assimilação dos indígenas?
ET – A política do Bolsonaro é uma velha política, que ele vendeu como nova, mas que de novo não tem nada. Ao mesmo tempo em que ele tenta limitar o direito territorial dos povos indígenas, ele tenta também vender, sob o rótulo do desenvolvimento, a prática agrícola, a exploração mineral. Isso já foi feito pela SPI [antiga Funai] cem anos atrás e foi superado.
O relacionamento do Estado brasileiro com os povos indígenas tem que se pautar no respeito à diferença, à autodeterminação dos povos, no respeito à diversidade linguística, isso tudo tem que ser observado.
Raio-X
LUIZ ELOY TERENA, 33
Advogado e coordenador jurídico da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil). Doutor em antropologia social pelo Museu Nacional (UFRJ). Tem pós-doutorado pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS, na França). Esteve à frente da ação no STF que obrigou o governo federal a proteger terras indígenas na pandemia e da denúncia contra Bolsonaro no Tribunal de Haia por genocídio indígena.
Texto: Renata Galf