Salvador faz guia ‘para não ser um turista babaca’ após discriminação de benzedeira
Dois turistas carioca publicaram um vídeo no Instagram com ofensas contra a benzedeira Eliane de Jesus
Depois que dois turistas cariocas publicaram um vídeo no Instagram com ofensas contra a benzedeira Eliane de Jesus, 48, enquanto ela trabalhava no largo do Pelourinho, centro histórico de Salvador, a prefeitura usou a mesma rede social para divulgar um “guia para não ser um turista babaca”.
Publicado no formato de stories -que tem duração de 24 horas- no sábado (13), no perfil de Rômulo Souza, que estava ao lado do nutricionista clínico Ludvick Rego, o vídeo em tom jocoso casou indignação ao viralizar nas redes sociais no feriado da última segunda-feira (15).
Sob o título “cada um com seu axé”, a imagem de 15 segundos mostra a benzedeira sentada à frente de um casarão amarelo, em estilo colonial, ao lado de uma mesa, vestida com indumentárias características dos adeptos às religiões de matriz africana.
Quem inicia o vídeo é Rômulo, ao dar o comando para o amigo: “fala”. “É aquela baiana ali, ó. Ela falou que vai me dar axé. Ela tem cara de macumbeira?”, emenda Ludvick, enquanto a imagem foca na trabalhadora. “Ela é o quê, irmã?”, pergunta Rômulo. “Marmoteira”, responde.
“E preguiçosa”, completa Rômulo, ao voltar a imagem para os dois, sob aquiescência de Ludvick. “Ela vai roubar o seu axé, isso, sim”, continua Rômulo, aos risos. “Vai roubar meu colar pra ela”, finaliza Ludvick, ao se referir às guias usadas por candomblecistas.
Antes de receber o vídeo pelo aplicativo de mensagens WhatsApp, Eliane tomou conhecimento da gravação ao ser abordada por conhecidos no Pelourinho, onde trabalha há dez anos. Frequentadora de uma casa de candomblé, deu prosseguimento ao ofício iniciado na família pela avó.
Na capital baiana, o trabalho de benzer as pessoas na rua vem de uma tradição secular dos adeptos das religiões de matriz africana, que recebem qualquer valor ao qual a pessoa que acredita nesse tipo de intervenção -geralmente banhada a folhas, ervas e pipoca- esteja disposta a pagar.
O trabalho costuma ser oferecido em pontos turísticos como o Pelourinho, além das áreas externas de igrejas onde os antigos escravizados associavam santos católicos a divindades de matriz africana, como Bonfim, Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, do Passo, de Santa Luzia e São Lázaro.
Mãe de três filhos já adultos, a benzedeira diz ter se sentido humilhada, revoltada, indignada e chateada com a exposição da imagem dela sem consentimento. “Eles se sentiram no direito de fazer chacota. Poderia ter sido qualquer outra pessoa que trabalha no Pelourinho”, brada.
O Ministério Público da Bahia abriu um procedimento de notícia de fato para apurar a ofensa que, em razão da origem, pode se configurar crime de racismo, diz o órgão. A dupla será intimada pela Polícia Civil baiana, que instaurou um inquérito para investigar o ocorrido.
Eliane diz que, agora, vai aguardar o resultado dos procedimentos instaurados pelos órgãos públicos em relação aos dois turistas. “Está tudo nas mãos de Deus. Vamos ver o que a Justiça vai decidir em relação ao que eles fizeram”, aguarda a trabalhadora.
Embora Eliane não trabalhe como baiana de acarajé, a presidente da associação nacional da categoria, Rita Santos, condenou o ato da dupla. “Eles desrespeitaram uma mulher negra, de terreiro, que estava ali a trabalho. Não é brincadeira”, criticou Santos.
Em resposta à postagem da dupla, a Prefeitura de Salvador também usou a internet para divulgar o “Guia para não ser um turista babaca”, com mensagens que alertam sobre o uso da máscara, passaporte de vacinação, contra o preconceito, respeito às mulheres e às religiões.
As mensagens publicadas no Instagram são acompanhadas de imagens da orla de Salvador, como a praia da Paciência (Rio Vermelho), Amaralina, Porto da Barra, além de pontos turísticos como a Igreja do Bonfim, o Elevador Lacerda e o próprio Pelourinho.
“O uso da máscara é obrigatório em Salvador. Não deixe a sua na mala”. “Alguns locais só aceitam pessoas vacinadas. Ande sempre com seu cartão de vacinação em mãos e evite dor de cabeça”. “Vai chegar numa mina? Vá na manha. Caso ela diga não, respeite e se afaste. Aqui e em qualquer lugar: não é não”.
“Salvador tem muito sincretismo religioso, mas isso não dá espaço para desrespeito às religiões. Não trate a fé das pessoas como brincadeira!”. “‘Obrigada’, ‘valeu’ e ‘massa’ são alguns exemplos de palavras educadas que você pode (e deve) usar para agradecer após um serviço”.
“Nem todo descanso é preguiça, mas todo preconceito é vergonhoso. Não caia na besteira de incentivar estereótipos pejorativos em nossa terra”, recomenda a última das seis dicas.
A reportagem conseguiu localizar somente o perfil de Ludvick, mas, por mensagem pelo próprio Instagram, ele apenas respondeu que “estava fora do ar um pouco”. Ainda na segunda, os dois publicaram na rede um vídeo de 2 minutos e 10 segundos com um pedido de desculpas.
Com cerca de 24 mil seguidores, Ludvick disse que o vídeo era uma retratação, um pedido de “desculpas ao povo da Bahia, ao povo do Pelourinho, ao povo do axé, que em momento algum a gente quis ofender a cultura, né, inclusive eu faço parte do axé (como é chamado o candomblé), e nós ali estávamos numa brincadeira de uma pessoa que estava vendendo axé, que a gente sabe que axé não se vende”, disse.
“Eu também peço desculpas porque fui eu que iniciei o vídeo, como Ludwick Rego falou, era uma brincadeira entre a gente e esse vídeo saiu da nossa rede social e vazou”, também defendeu-se Rômulo, a respeito das acusações que, diz, passaram a ser feitas pela internet.
Na avaliação do advogado que representa Eliane, Marcos Alan, a emenda saiu pior do que o soneto, disse. “Não só reiteraram o que fizeram, além de questionar uma prática que, para quem acredita, é religião. Para quem não acredita, é cultura”, considerou.
Alan chama a atenção ao fato de que a gravação foi realizada na cidade de maior população negra fora do continente africano, a uma semana do Dia da Consciência Negra (20 de novembro), que marca a data da morte do líder quilombola Zumbi dos Palmares.
“Houve uma prática de calúnia, difamação e injúria qualificada pelo componente racial, racismo e intolerância religiosa”, classificou. “Ainda houve uma violação ao direito de imagem, agravada pela exposição em rede mundial”, continuou.
De acordo com o advogado, a lei 7.716, que versa sobre os crimes relacionados a racismo, quando há o emprego deste tipo de crime pela internet, a pena sai de 1 a 3 anos de reclusão para 2 a 5 anos de prisão. “Foram eles que produziram as provas, que praticaram, gravaram e divulgaram o ato”.
Por Franco Adailton