PF investiga suposto esquema venda de barrigas de aluguel por clínica de SP
A principal suspeita é que haja uma cooptação de pessoas pobres, em troca de remuneração financeira, para atender os interessados, inclusive de fora do país
A Polícia Federal em São Paulo investiga um suposto esquema de venda ilegal de cessões temporárias de úteros, as barrigas de aluguel, que envolve clínicas de reprodução humana na capital paulista.
A principal suspeita é que haja uma cooptação de pessoas pobres, em troca de remuneração financeira, para atender os interessados, inclusive de fora do país.
Em trecho, a juíza Letícia de Assis Bruning afirma que, após investigações, a PF concluiu “ser plausível a hipótese de que a cedente do útero seja pessoa socioeconomicamente vulnerável e que teria sido cooptada para viabilizar a gestação de substituição medida remuneração.”
O inquérito foi instaurado em agosto após o americano Philip Ghali, 46, comparecer ao posto de emissão de passaportes da PF, no Shopping West Plaza, na zona oeste, com intuito de emitir passaporte para uma criança recém-nascida.
Com o pedido, Ghali juntou uma certidão de nascimento do suposto filho. Alguns detalhes chamaram, porém, a atenção dos policiais: o documento não tinha o nome da mãe; e o suposto pai havia dado entrada no país em 15 de junho -três dias após o nascimento da criança-, sendo esta a primeira vez no Brasil.
A advogada de Philip, Veronica Abdalla Sterman, afirmou à Folha que ele sonhava ser pai e, como não é casado, a solução seria fazer produção independente. Ela nega irregularidades nas condutas de seu cliente (leia abaixo).
A PF descobriu que a genitora da criança era Thamiris Menezes, 34, residente de São Vicente (SP). A mesma mulher, segundo os documentos, havia dado à luz três crianças em datas anteriores, mas só uma delas era registrada em seu nome.
Procurada, as advogadas Nicole da Silva Chiquetti e Marcella Malena Vieira Alvares, representantes de Thamiris, disseram que uma das gestações dela foi a do filho “biológico do sr. Philip”, em “um ato de amor por ela realizado, com a intenção de concretizar um sonho do sr. Philip”.
O americano deve alegar às autoridades brasileiras que escolheu o país por questões financeiras, pois o processo seria mais barato aqui do que nos EUA. Além disso, Philip deve afirmar que desconhecia Thamiris, que não sabia que a legislação brasileira não permite pagar por barriga de aluguel e que contratou uma empresa para facilitar o processo de fertilização.
Em meio à investigação, o cartório encaminhou à PF documentos do Instituto Paulista de Reprodução Humana, sobre procedimentos de fertilização in vitro, com a participação de Thamiris, a qual se comprometia a ceder temporariamente o útero para gestação de um filho de Ghali. A clínica fica localizada na Vila Mariana e tem como responsável o médico José Geraldo Alves Caldeira.
Conforme o relatório da PF, não há no Brasil legislação sobre reprodução assistida. Há, contudo, resoluções do CFM (Conselho Federal de Medicina) que a regulamentam e são seguidas pela Justiça.
Pelas regras, a cessão temporária de úteros é possível, desde que a mulher pertença à família de um dos parceiros.
O regramento permite, em caso excepcionais, que pessoas fora dessa lista possam emprestar úteros. É necessário, porém, uma autorização do CRM (Conselho Regional de Medicina).
“A cessão temporária do útero não pode ter caráter lucrativo ou comercial e a clínica de reprodução não pode intermediar a escolha da cedente”, diz trecho da resolução 2.320/2022 do CFM.
Os policiais federais consideram que essas regras possam ter sido quebradas.
Em documentos, Thamiris teria alegado que o empréstimo do útero se trataria de uma ajuda a um americano, “visto que possuíam estreito vínculo de amizade”. Para a PF, porém, o vínculo entre Ghalil e Thamiris “se mostrou inconsistente, já que, aparentemente, vivem realidades financeiras distintas, não falam o mesmo idioma, bem como nunca se encontraram pessoalmente”.
A suspeita inicial da PF aponta para possível esquema de tráfico internacional de pessoas, porque, conforme apontam os policiais em relatório, em vários países do mundo, incluindo o próprio país de Ghali, as barrigas de aluguel são permitidas por lei. No Brasil, não. Brasileiros buscam os EUA para isso.
A evolução do inquérito trouxe outros problemas graves. Quando a PF consultou o CRM sobre as autorizações solicitadas pelo Instituto Paulista de Reprodução Humana nos procedimentos em Thamiris, recebeu do órgão a informação de que o pedido havia sido negado.
O médico responsável pelo Instituto teria apresentado, simultaneamente, dois pedidos de cessão temporária de útero para Ghali. Uma das mulheres era Thamiris e a outra não teve o nome informado. O pedido foi inferido “por se contrapor à excepcionalidade” expressa na resolução do CFM.
Mesmo assim, a clínica teria seguido com os procedimentos. Em 2 de dezembro de 2012, o embrião foi transferido para o útero de Thamiris.
Os advogados apresentaram exames de DNA para provar que a criança é filha legítima de Ghalil e, assim, afastar as suspeitas de tráfico de pessoas. Os documentos também indicam que ele enviou ao Brasil, por empresa especializada, os óvulos já fecundados para serem transferidos para as supostas amigas.
Procurada, a PF informou que não comenta casos em andamento.
O Cremesp (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo) afirmou por meio de nota que investiga o caso, porém a apuração ocorre sob sigilo.
OUTRO LADO
A advogada de Ghali disse que ele congelou seus próprios embriões, trouxe ao Brasil com autorização das autoridades e, deste procedimento, nasceu a criança. “Philip é pai biológico da criança, exames de DNA comprovam a paternidade de Philip. Embora tenha nascido prematuro, está saudável, bem cuidado, tomou todas as vacinas do calendário e faz acompanhamento pediátrico.”
Em nota à Folha, o advogado do Instituto Paulista de Reprodução Humana, Leandro Raca, disse que o instituto “ainda não teve acesso integral à investigação, mas está apurando [inclusive internamente] os fatos e permanece à disposição das autoridades para prestar os esclarecimentos cabíveis”.
Em documento anexado ao inquérito, o instituto nega que tenha intermediado a escolha das mulheres que emprestariam o útero temporariamente a Ghalil. O próprio americano teria informado conhecer “duas brasileiras que os gerariam, e que posteriormente enviaria seus dados”.
Foi o instituto, segundo o documento, que indiciou a empresa La Vie Consultoria, de Juliana Silva da Paz, para assessorar o cliente em questões burocráticas.
O advogado de Juliana, Bruno Ferullo, disse que a cliente possui empresa voltada ao planejamento familiar que atua na assessoria documental do procedimento de fertilização in vitro e documentação junto a laboratórios e médicos.
“A empresa possui cinco anos no mercado, atuando com excelência e profissionalismo. Em específico no caso do Phillip a empresa lidou de forma multidisciplinar com os termos necessários a realização do procedimento, por fim assessorou o estrangeiro na busca de seu sonho em ser pai solo”, diz.
Por Rogério Pagnan e Isabella Menon