No Pará, prefeito ocupa terra pública com gado e desmate ilegal, aponta Greenpeace

João Cleber, de São Félix do Xingu, nega acusações e diz que indígenas vizinhos podem ser responsáveis

João Cleber (MDB), prefeito de São Félix do Xingu, no Pará, tem desmatado, pelo menos desde 2008, áreas de sua fazenda Bom Jardim. A propriedade, segundo dados cruzados pela ONG Greenpeace, encontra-se em uma floresta pública não destinada na Amazônia e não tinha autorização para desmate, fatores que indicam ilegalidade no processo e grilagem –como é conhecida a ocupação ilegal de terras.

A fazenda consta na declaração de bens de João Cleber da eleição municipal de 2020, na qual foi eleito, no primeiro turno.

A área tem multas e embargos pelo Ibama, por destruição de floresta. A propriedade, que é usada para criação de gado, faz parte indiretamente da cadeia de fornecedores da JBS –a empresa diz que cumpre compromissos e que vai averiguar situação.

São Félix do Xingu é o município com maior rebanho do Brasil, com cerca de 2,4 milhões de cabeças. Segundo o IBGE, a população na cidade é de 135.732. É também, historicamente, uma das cidades com mais desmatamento no país.

Segundo dados do último Prodes, programa do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) que mede anualmente a destruição de biomas brasileiros, de agosto de 2020 a julho de 2021, a cidade derrubou 576,7 km² de Amazônia. Isso equivale a 365 parques Ibirapuera, em São Paulo.

O enorme rebanho e a elevada destruição levam São Félix do Xingu ao posto de município que mais emite gases-estufa no Brasil, segundo dados do Seeg (Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa).

Procurado pela reportagem, João Cleber negou haver desmates na fazenda e disse que a destruição poderia ser culpa de indígenas.

“Pode acontecer que, em razão da fazenda ser confrontante com uma aldeia indígena Kaiapó e os indígenas utilizam [sic] fogo para limpeza de uma roçada para o plantio de mandioca e este fogo algumas vezes alastra-se, atingindo áreas da propriedade”, afirma o prefeito, em nota.

A afirmação, porém, não condiz com as imagens de satélite. O Prodes registra, com satélites, o chamado corte raso de floresta, ou seja, a derrubada completa de áreas de mata em um curto espaço de tempo.

Queimadas costumam ser o processo seguinte no desmatamento –o fogo é usado para “limpar” uma área já derrubada. O Greenpeace olhou também dados do Deter, programa do Inpe que produz alertas de desmatamento.

Além disso, as imagens mostram que áreas de desmate em um veio centralizado na propriedade, mais distante da terra indígena Kaiapó.

O prefeito também afirmou que a área é de sua família desde 1984 e que “estamos em processo de regularização da fazenda e suas atividades junto aos órgãos competentes”, mas não enviou à reportagem documentação que comprove a posse da terra.

O Greenpeace Brasil chegou à fazenda Bom Jardim ao olhar, por todos os motivos citados acima, para o município de São Félix do Xingu. Segundo Cristiane Mazzetti, representante do Greenpeace Brasil, a área está entre as 50 com maior desmate recente no país, a partir de dados do Deter.

Há ainda outras duas propriedades no município que foram analisadas pela equipe do Greenpeace. Todas estão sobrepostas a florestas públicas não destinadas –áreas públicas, do estado ou da União, sem uso definido–, têm indicações de desmatamentos ilegais e não constam na base do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) de processos de titulação, o que seriam sinais de grilagem, segundo o Greenpeace.

Esses exemplos, afirma Mazzetti, demonstram o processo de ocupação irregular de terras e os riscos de incentivo à grilagem que representam os PLs (Projetos de Lei) que podem ser votados nesta semana pelo Senado.

São eles o PL 510/21, que trata de regularização fundiária e tem sido chamado de PL da grilagem, e o PL 2159/21, que trata de licenciamento ambiental.

Segundo Mazzetti, o desmatamento em terras públicas, como os casos apontados, ocorre para demonstrar ocupação e buscar, no futuro, uma forma de obter o título de fato da terra.

“Conforme o Congresso flexibiliza mais a legislação sobre regularização fundiária, outras situações como essa vão se repetir, aos poucos, levando a Amazônia para um ponto de não retorno”, diz Mazzetti.

As três fazendas, além dos sinais de grilagem e de desmate recentes, têm registros de produção pecuária e fornecimento de gado para a JBS, uma das maiores indústrias de proteína animal do mundo. Isso indica contaminação por desmate ilegal da cadeia produtiva da empresa.

Um estudo do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) já mostrou que o pasto para criação de gado ocupa cerca de 75% das áreas desmatadas em terras públicas não destinadas na Amazônia.

As fazendas Bom Jardim, do prefeito de São Félix do Xingu, e a Nossa Senhora Aparecida, também analisada pelo Greenpeace, podem ter comercializado gado indiretamente com a JBS –os animais dessas fazendas passaram por outras propriedades que, posteriormente, forneceram gado para a empresa.

Gigantes frigoríficos como a JBS, Marfrig e Minerva costumam afirmar que há dificuldades para acompanhar a cadeia indireta de fornecimento. Em 2009, as empresas assinaram o Compromisso Público da Carne, na qual afirmavam que, em até dois anos, obrigavam-se “a comprovar de forma monitorável, verificável e reportável” que seus fornecedores indiretos não teriam desmatado a Amazônia. A promessa não foi cumprida até hoje.

Mas entre as três fazendas não há só fornecedores indiretos. A fazenda Flor da Mata 3, que também fez parte do levantamento da ONG, comercializou gado diretamente com a JBS de Marabá, de julho de 2019 até, pelo menos, julho de 2021.

Além do desmatamento recente na Flor da Mata 3, a investigação aponta que o dono da fazenda, Edson Coelho dos Santos, chegou a ser preso em 2014 por acusação de envolvimento em homicídios e em ameaças a pessoas do movimento sem terra. A área da propriedade é alvo de conflitos agrários há anos. A reportagem tentou, sem sucesso, contato com Edson Coelho dos Santos.

A auditoria mais recente liderada pelo MPF (Ministério Público Federal) aponta irregularidades em quase 32% do gado adquirido pela JBS de janeiro de 2018 a junho de 2019. A maior parte diz respeito a animais comercializados por fazendas com registros de desmatamento ilegal.

Procurada, a JBS afirmou ter “tolerância zero com o descumprimento dos critérios socioambientais” como parte de sua política de compra responsável e do protocolo de monitoramento do MPF.

Segundo a empresa, todas as transações com as fazendas citadas estavam corretas do ponto de vista da política de compra responsável e do protocolo com o MPF.
“[…] observando seu compromisso com a sustentabilidade da cadeia da pecuária, a JBS solicitará esclarecimentos à Secretaria Estadual do Meio Ambiente do Pará e ao Ministério Público Federal do Pará, responsáveis pela fiscalização desses temas”, disse a empresa, em nota.

Sobre as fazendas estarem em florestas públicas não destinadas, a empresa afirma que “elas possuem Cadastro Ambiental Rural ativo na base da Secretaria Estadual do Meio Ambiente do Pará, que é a fonte estabelecida pelo protocolo do MPF para monitorar fornecedores de gado”. Também diz que pedirá às autoridades informações quanto à situação das áreas.

A reportagem também procurou Antônio Francisco da Silva Filho, que consta em documentos como responsável pela fazenda Nossa Senhora Aparecida. Ele respondeu somente que não é mais proprietário da área.

Por Phillippe Watanabe

 

Sair da versão mobile