Negros ganham menos que brancos e são minoria no setor publicitário, diz estudo
Desigualdade de renda é maior para mulheres negras, que recebem menos da metade do salário de um homem branco
“A trajetória no setor de comunicação é muito dura para uma pessoa negra”, afirma Dilma Campos, 49, diretora executiva da agência Outra Praia. A constatação vem de quem já trabalhou em diversas empresas do ramo, foi diretora de grandes grupos de publicidade e, hoje, acumula mais de 30 anos de carreira na área.
Mulher, preta e na alta gestão de uma empresa de publicidade, Dilma é exceção no Brasil.
Um levantamento do Núcleo de Estudos Raciais do Insper examinou as desigualdades socioeconômicas entre pessoas brancas e negras no segmento publicitário brasileiro.
Segundo o trabalho, a população negra é minoria entre os profissionais da área, ocupa menos cargos de liderança e recebe salários piores que os profissionais brancos.
Os dados revelam o que Dilma presenciou em toda sua carreira. Ela conta que, ao longo dessas três décadas, teve poucos colegas pretos no trabalho. “Nem gerentes negros, vez ou outra um estagiário”, diz.
O estudo inaugura o projeto Sustentabilidade Racial, lançado nesta sexta-feira (10/9) pelo Ministério Público do Trabalho, em parceria com o Núcleo de Estudos Raciais do Insper e a Rede Brasil do Pacto Global.
A iniciativa vai funcionar como um observatório da desigualdade racial e de gênero no mercado de trabalho, disponibilizando dados e estatísticas sobre os temas.
Para Valdirene de Assis, procuradora do trabalho e coordenadora do projeto de inclusão de jovens negras e negros universitários do Ministério Público do Trabalho, a questão racial é preponderante para o avanço da agenda ESG (sigla em inglês para boas práticas ambientais, sociais e de governança corporativa) no Brasil.
“A gente só pode ter no nosso país uma empresa se dizendo efetivamente sustentável se ela atender também esse requisito da sustentabilidade racial”, diz.
Segundo ela, o material sobre o setor publicitário é o primeiro de uma série que vai analisar a participação da população negra em outros segmentos econômicos brasileiros.
Feito a partir dos dados de 2017 presentes na Rais (Relação Anual de Informações Sociais), o levantamento mostra que mais da metade dos funcionários do setor de publicidade (55%) são brancos.
A população negra representa cerca de 30% dos trabalhadores, sendo 27% de pardos e 3% de pretos.
Considerando a distribuição racial na alta gestão, os dados apontam para um cenário ainda mais desigual. Na diretoria e nos chamados cargos estratégicos -que incluem publicitários, redatores, diretores de criação-, apenas 15% dos trabalhadores são negros.
“Tanto homens quanto mulheres negras participam menos do setor, e esse número diminui com a importância do cargo. Quanto maior o cargo na escala de prestígio e de salário, menor a participação da população negra”, explica Rafael Tavares, economista da USP e um dos pesquisadores do estudo.
Segundo o relatório, a quantidade de funcionários negros no setor de publicidade tem aumentado nos últimos anos, mas o crescimento fica concentrado em funções menos estratégicas.
Para Michael França, coordenador do Núcleo de Estudos Raciais do Insper, uma das explicações para a disparidade racial na alta gestão é a rede de contatos.
“Cargos de gerência e diretoria são formados, predominantemente, por homens brancos. Então, na hora de indicar uma pessoa, ele tende a indicar alguém branco, simplesmente porque seu círculo de amizade é formado por pessoas brancas”, afirma.
Profissionais negros também são menos favorecidos quando se compara a remuneração. Segundo os dados analisados no estudo, eles recebem salários mais baixos, mesmo ocupando os mesmos cargos que pessoas brancas.
Na diretoria, por exemplo, funcionários negros ganham, em média, 55% do salário de um profissional branco. Fora da alta gestão e das posições estratégicas, a disparidade é menor: 69%.
No entanto, são as mulheres negras as mais impactadas pela desigualdade de remuneração. Em média, elas recebem menos da metade (45%) do salário de um homem branco.
Para França, parte dessa disparidade salarial pode estar relacionada a um processo de discriminação inconsciente, em que as pessoas percebem características da fisionomia branca como mais positivas, o que facilita o progresso daquele profissional na empresa.
Outro aspecto, segundo o coordenador, são as diferentes condições socioeconômicas entre brancos e negros, que podem influenciar a produtividade do profissional dentro de uma mesma ocupação e, consequentemente, o salário que ele recebe.
“Um branco e um negro podem ter a mesma formação, mas a tendência é que o branco saia da faculdade com mais habilidades, simplesmente porque ele conseguiu acumular aptidões. O branco que sai do ensino superior, possivelmente, já tem um inglês fluente e leu mais livros ao longo da vida, enquanto o negro, não”, afirma.
Os pesquisadores também analisaram como a desigualdade racial evoluiu ao longo dos anos e compararam o indicador com o nível de atividade econômica do país.
A conclusão foi que, em momentos de maior crescimento do PIB (Produto Interno Bruto), houve uma tendência de redução das disparidades entre brancos e negros no setor.
De acordo com Tavares, em períodos de bom desempenho econômico, há uma saturação do mercado de trabalho, o que aumenta a propensão de um empregador contratar pessoas negras, já que é mais difícil encontrar mão de obra.
Contudo, o oposto também é verdadeiro. Quando a economia do país estava mal, as diferenças salariais e de ocupação no segmento publicitário aumentaram.
“No momento de baixo desempenho econômico, a pessoa negra, seja por discriminação direta ou indireta, vai ser retirada da sua posição antes de alguém branco”, diz.
Para França, é comum que as disparidades raciais cresçam durante crises, e as causas para isso vão desde o tipo de educação formal recebida até a rede de contato desigual entre brancos e negros.
“Existe toda uma conjunção de fatores que vai levar a população negra a ter, sistematicamente, piores resultados. É o que convencionou a ser chamado de racismo estrutural”, afirma.
Para o coordenador do Núcleo de Estudos Raciais do Insper, o setor publicitário tem uma influência grande na forma como a população negra é representada, o que faz com que a discussão sobre desigualdade racial nesse segmento seja relevante para quebrar com a reprodução de vieses preconceituosos.
“Aumentando a representatividade no setor, é possível que os comerciais comecem a passar uma imagem mais positiva da população negra, a televisão comece a incorporar mais personagens negros, e isso pode afetar os estereótipos raciais que a gente tem na sociedade.”
Após 30 anos de carreira, Dilma Campos diz não ver muitas mudanças no cenário racial do setor publicitário, mas tem esperanças de que isso aconteça.
“Ainda existe a sensação de que a gente tem que chutar a porta para entrar, que temos que entrar quando alguém permite, e eu fico me perguntando: ‘quando que isso vai mudar de verdade?'”, diz.
“O desgaste que você tem frente a esse racismo estrutural é muito grande. Então você tem que ser muito forte para ocupar aquele lugar.”
Por Thiago Bethônico