Mulheres são maioria nos atendimentos de burnout no SUS
Para especialistas, elas têm mais transtornos do trabalho porque também estão sobrecarregadas com tarefas domésticas
No ano de 2023, foram registrados 3.567 procedimentos ambulatoriais referentes a transtornos mentais relacionados ao trabalho. Desse total, 2.579 eram atendimentos para mulheres e 988 para homens, segundo dados do Ministério da Saúde. No ano anterior, foram 1.655 atendimentos para mulheres e 880 para homens, totalizando 2.535. De 2022 para 2023, o número de atendimentos para transtornos mentais do trabalho em mulheres aumentou 54%.
Os atendimentos relacionados somente ao burnout, no ano de 2023, somam 393, sendo 282 para mulheres e 111 para homens. Em 2022, foram registrados 227 atendimentos no total, 164 para mulheres e 63 para homens.
Em São Paulo, segundo a Secretaria Municipal da Saúde, desde janeiro de 2024, foram registrados 127 casos de transtorno mental relacionado ao trabalho, sendo 86 casos femininos e 41 masculinos.
À Folha, a pasta informou que “a maior incidência em mulheres pode estar associada à estrutura dos lares, onde as mulheres, após o trabalho formal, desempenham as tarefas domésticas, resultando em maior esgotamento físico e mental; e também por ser um público que mais procura assistência à saúde, o que resulta em mais diagnósticos”.
Para Luisa Jötten, mestre em psicologia pela USP, “as mulheres têm mais burnout porque são elas que estão carregando o mundo nos ombros. São elas que são criadas para não reclamar, não pedir ajuda e oferecer ajuda”.
Thárin Radín, 35, servidora pública do Tribunal de Contas do Estado de Roraima (TCE-RO), relata que, durante a pandemia, teve que cuidar sozinha da sua avó e da sua mãe, além do emprego formal. A servidora conta que teve dificuldade para perceber os sintomas do burnout.
“Eu fui deixando de perceber necessidades fisiológicas básicas, às vezes eu tinha passado o dia sem beber água, sem comer, sem ir ao banheiro para fazer xixi. Comecei a ter episódios de insônia, o que eu nunca tive”, conta.
“O que me despertou para perceber que provavelmente estava acontecendo alguma coisa séria foi o aparecimento de várias bolhas pelo corpo.”
Jötten afirma que alguns profissionais entendem o burnout como algo relacionado apenas ao trabalho formal, porém, para ela, essa concepção é desatualizada.
“Temos que tomar muito cuidado para falar de diagnóstico, por que ele é o quê? Uma posição de comportamento dentro de um contexto sociocultural. Quando olhamos para o burnout como algo que ocupa toda a vida da pessoa, olhamos para uma pessoa que está esgotada em tudo, e a mulher cumpre mais jornadas de trabalho do que os homens”, diz.
“A mulher sai do trabalho e, muitas vezes, vai ter a jornada doméstica. Uma pessoa que não reconhece o trabalho não remunerado como também uma fonte de estresse, vai invalidar o paciente.”
Radín já fazia acompanhamento com uma psicóloga que, ao saber dos sintomas, encaminhou a servidora a uma psiquiatra. “Até então, eu não sabia o que eu tinha, não senti que eu realmente estava muito ruim. O atestado médico dizia que o motivo do afastamento era sintomas de burnout”, conta.
Jötten ressalta que “diferentemente do que algumas pessoas acreditam, não se trata burnout com férias, com afastamento, porque é um problema na forma como a pessoa está levando a vida. Uma hora, ele se reestabelece de novo”.
A servidora relata que, na época do burnout, trabalhava em um setor em que a maioria dos funcionários era homem. “Eu precisava realmente dedicar um pouco mais de atenção para os cuidados com as pessoas da família que estavam precisando. Na quarentena, eu recebia muita pressão do chefe, por exemplo, que dizia que eu teria que ir trabalhar presencial, que não dava certo trabalhar desse jeito, que eu não atendia na hora, não respondia mensagem”, lembra.
“Eu comecei a ficar desesperada com o telefone, com o WhatsApp, eu não podia ouvir um toque de telefone que eu começava a ficar nervosíssima.”
Radín conta que, no total, ficou afastada do trabalho formal por quatro meses, porém, durante esse tempo, continuou cuidando de sua mãe e de sua avó. A servidora notou que era preciso uma mudança e, após o afastamento, mudou de posição. “O fato de mudar me ajudou muito porque o setor em que eu trabalho hoje tem mulheres que cuidam de pais, que cuidam de idosos”, ressalta.
Jötten comenta que, nos casos em que a pessoa não consegue impor limites no trabalho, por exemplo, “para que ele, de forma permanente, mude, você precisa trocar de emprego. Se você não consegue colocar limites, organizar a sua rotina de casa para que ela possa ser diferente, a gente vai ter que cortar outro braço da sua vida porque a rotina de casa não vai mudar. São algumas decisões mais radicais”.
Belinda Mandelbaum, professora titular e chefe do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho da USP, acredita que é fundamental que, no trabalho, “os gestores tenham consciência sobre as dificuldades que essa mulher enfrenta no seu dia a dia. É preciso colaborar para que ela possa estar numa situação mais tranquila para poder trabalhar ou mesmo para poder ser compreendida se ela precisar faltar um dia porque uma criança está doente”.
Porém, a psicóloga ressalta que a mudança permanente pode ser difícil porque, “muitas vezes, as mulheres se encontram em contextos em que elas não têm a quem recorrer, elas não têm parceiros ou parceiras que a apoiem. E aí a gente entra numa questão que é exigir isso numa contingência maior que a história pessoal, que é a política. Se você precisa cuidar de alguém e você não tem com quem contar, o governo deveria te ajudar nisso”.
Mandelbaum entende que algumas políticas públicas poderiam colaborar indiretamente com a promoção de saúde mental para as mulheres. “No campo da educação, por exemplo, ampliar o número de vagas em creches. É necessária a manutenção de um valor de seguro desemprego que seja possível para a mulher manter a família, caso ela não esteja trabalhando. Poder ter garantido atendimento de saúde para as crianças. Tudo isso vai dando segurança para a mulher no campo da saúde mental”, exemplifica.
Jötten ainda observa que “a maioria das mulheres que consegue sair do burnout e não voltar para ele são mulheres de muito privilégio, conforto financeiro, com uma rede de apoio muito presente. Sabemos que isso vem acompanhado de classes, cores e de várias outras coisas”.
Por Juliana Matias