Ministério Público apura relação entre ataques e reivindicações de presos no RN
OUTRO LADO: Fátima Bezerra (PT) diz que governo vai investigar suspeitas de tortura e fornecimento de comida estragada apontadas em inspeção de órgão federal
Os ataques criminosos no Rio Grande do Norte, iniciados na madrugada de terça (14), têm relação com uma união de facções que reivindicam mudanças nas condições nos presídios do estado, segundo o Ministério Público potiguar.
Para os investigadores, as ações têm sido usadas para cobrar a volta de visitas íntimas e a permissão do envio de comida pelas famílias. Inspeção realizada no fim do ano passado por órgão federal apontou a prática de tortura física e psicológica, com castigos e fornecimento de comida estragada.
A governadora Fátima Bezerra (PT) afirma que vai investigar as denúncias.
Diante dos atentados contra ônibus, prédios públicos, bancos e lojas, aulas foram canceladas e moradores de ao menos 21 cidades vivem sob medo.
Outro suspeito está internado. Até o início da noite, 42 pessoas foram presas e um adolescente foi apreendido, segundo a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do RN. Doze armas, 39 artefatos explosivos, nove galões de gasolina, além de drogas e munições, foram apreendidos pelos agentes.
Cerca de cem policiais da Força Nacional circula nas ruas de Natal. O ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, também anunciou o envio da Força de Intervenção Penitenciária para o estado.
A apuração do Ministério Público aponta que o Sindicato do Crime, do Rio Grande do Norte, e o PCC (Primeiro Comando da Capital), de São Paulo, deixaram os planos de vingança após o massacre de Alcaçuz, em 2017, para pleitear melhorias nos presídios.
Na época do confronto, integrantes da facção paulista entraram em um pavilhão do Sindicato e mataram 26 pessoas. O episódio foi o ápice de uma rivalidade iniciada em 2012, quando o grupo potiguar se consolidou como uma dissidência do PCC por discordar das regras e dos valores mensais cobrados pela organização.
Juliana Melo, antropóloga e pesquisadora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, diz que o Sindicato ganhou projeção quando organizou uma greve de fome em 2014, após uma tentativa de instalar bloqueadores de sinal de celular na prisão de Parnamirim.
A relação entre as facções ficaria pior com o assassinato de Berg Neguinho, líder do Sindicato do Crime, pelo PCC. A pesquisadora diz que hoje o Sindicato é um grupo forte e que cresceu em meio a tentativas do poder público de negar a existência de facções.
“O massacre de Alcaçuz foi avisado pelas famílias às autoridades, e os ofícios foram arquivados. Mas a facção criou estatuto e desenvolveu relações com outros grupos, como o Comando Vermelho, e atuação no mercado da droga e no controle de territórios.”
Logo depois do episódio, diz Melo, os presos relataram tortura física e psicológica. “A prisão era vista como um queijo suíço, construída sobre dunas e fácil de escapar. Isso mudou. Não tem mais celular ou tomada.”
Segundo Promotoria, denúncias de maus-tratos sempre são investigadas, mas principais queixas dos presos —falta de visitas íntimas, que não acontecem desde o massacre, e a proibição do envio de comida por parentes— fazem parte do controle restabelecido após 2017.
Para o órgão, a visita permitida na lei de execuções penais é a social, para manter o convívio familiar. Já o envio de comida gera risco de troca de informações e o envio de celulares, chips ou drogas.
INSPEÇÃO
Os detentos no sistema estadual do Rio Grande do Norte convivem com um déficit de mais de mil vagas, segundo a Secretaria de Administração Penitenciária. São 7.804 presos para 6.353 vagas.
A situação do estado piorou nos últimos anos, segundo a perita Bárbara Coloniese, do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, órgão federal.
“O funcionamento do sistema prisional do RN é baseado na prática sistemática de tortura física e psicológica”, afirma. Ela inspecionou cinco unidades do estado em novembro do passado, duas delas prisões: Ceará Mirim e Alcaçuz.
A perita também disse que a comida é insuficiente e grande parte servida é estragada, que vários presos estão nas celas com dedos quebrados e marcas de bala no corpo e que o fornecimento de água acontece três vezes por dia. Ainda, afirma que uma das formas de castigo é colocar presos doentes com tuberculose junto com outras pessoas em celas.
Coloniese diz que a entidade enviou ofícios ao Ministério Público e ao governo do estado com alertas sobre a situação, e que representantes não foram recebidos pela governadora. O relatório oficial sobre a inspeção do fim do ano passado deve ser publicado nos próximos dias.
A Promotoria diz que investiga as denúncias recebidas sobre maus-tratos.
A gestão Fátima Bezerra foi procurada sobre as suspeitas de tortura, comida estragada e falta de assistência médica apontadas pelos peritos, mas não respondeu até a publicação.
Em entrevista na tarde desta quinta à rádio 98 FM Natal, a governadora disse que o estado é referência em projetos de ressocialização de presos e que vai investigar as denúncias. “O governo jamais compactuará com medidas de arbítrio. Por parte da governadora, o que será feito é uma investigação profunda para saber se isso procede.”
A pasta de Administração Penitenciária diz que aguarda o relatório da inspeção de 2022, e que já atendeu ofícios recebidos sobre a situação. Afirma que o então vice-governador Antenor Roberto (PCdoB) recebeu os peritos em 25 de novembro de 2022.
Por Lucas Lacerda