Mesmo com decisão judicial, mulheres com implante anticoncepcional da Bayer não conseguem retirá-lo pelo SUS
Essure é um par de molas de aço inoxidável que deve ser inserido pelo canal vaginal
Em uma consulta médica na UBS Casa Verde, em São Paulo, para se preparar para a laqueadura, Caroline Teixeira da Silva, 37, foi apresentada a um método inovador. Pouco invasivo e de rápida recuperação, o Essure, da farmacêutica Bayer, prometia torná-la estéril.
Em uma manhã de novembro de 2011, colocou o microimplante com a expectativa de que teria suas trompas obstruídas em três meses. Saiu do local com dores abdominais, mas atribuiu isso ao procedimento.
Com o passar dos anos, Silva começou a ter queda de cabelo, hemorragias menstruais, seus dentes ficaram moles e passou a sentir cansaço excessivo. Somente em 2018 descobriu que tudo isso poderia estar sendo causado pelo Essure –seus sintomas coincidiam com as queixas de outras mulheres que também tinham o dispositivo.
As unidades públicas de saúde, no entanto, não retiraram o dispositivo e, mesmo com exames em mãos, ela não conseguiu um retorno ao médico, conta. “Tudo é uma dificuldade. Está sendo um processo cansativo, doloroso e irritante, porque a gente não consegue nada e ainda nos hospitais somos taxadas como loucas.”
O Essure é um par de molas de aço inoxidável que deve ser inserido pelo canal vaginal e direcionado às trompas uterinas, onde pode se expandir em até 2 mm. A ideia é que, durante a expansão, as molas se fixem na parede das trompas e estimulem a cicatrização do local.
O microimplante teve sua autorização de uso emitida pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) em 2009, mas 8 anos e muitos processos depois, a Bayer deixou de comercializar o produto.
À reportagem, em agosto de 2021, a farmacêutica disse que a segurança e eficácia do Essure foram comprovadas por “um corpo robusto de estudos científicos” e que tirou o produto do mercado por “motivos comerciais e de estratégia de negócios”.
No Brasil, um grupo de 334 brasileiras tenta um acordo indenizatório de 30 milhões de euros (cerca de R$ 180 milhões) pelos danos que teriam sido provocados pelo contraceptivo. Além disso, há mulheres que lutam na Justiça para forçar os hospitais públicos a retirarem os dispositivos colocados pelo SUS (Sistema Único de Saúde).
Mas, mesmo com decisões judiciais obrigando governos a fazerem as cirurgias, há locais que deixam de remover o microimplante das pacientes.
Foi o que ocorreu com Anna Bárbara Reis Cordeiro, 37. Ainda que tivesse uma decisão judicial em seu favor, ela não conseguiu retirar o microimplante colocado em 2014 no Hospital Materno Infantil de Brasília, administrado pelo governo do Distrito Federal.
Uma decisão de setembro de 2020 obrigava o DF a remover o dispositivo em 30 dias. O estado recorreu e perdeu. A ordem, porém, não foi cumprida. Cordeiro teve sua sentença parcialmente alterada e foi colocada em uma fila, que segue, no entedimento das autoridades, as prioridades de atendimento.
“Cada dia que passa está aumentando minha dor na região pélvica. Minha barriga incha muito e fica tudo muito dolorido por causa da inflamação. Eu tenho que ficar indo atrás, mas o hospital não faz nada a respeito disso”, conta.
Adriana Vieira da Silva Gama, 42, tenta tirar o dispositivo há cerca de dois anos, quando descobriu que suas dores poderiam estar relacionadas a ele. A decisão judicial em seu favor também não foi cumprida, e ela está na fila para a cirurgia.
Gama não tem expectativa, porém, de conseguir a retirada pelo SUS. Preferiu fazer um curso de eletricista para conseguir um emprego e, assim, com um plano de saúde, remover o Essure.
“Eu estou correndo atrás do meu curso para conseguir um emprego e ver se eu mesma tiro. Porque pelo GDF [Governo do Distrito Federal] é mais fácil morrer”, diz.
Já Luciene Justino Ferreira, 42, havia conseguido uma decisão favorável que obrigava o DF a retirar o dispositivo em março deste ano, mas o Estado recorreu e ganhou. Com dores desde que colocou o microimplante, em 2013, ela tenta há cerca de três anos fazer a retirada.
Uma das complicações comuns é a desintegração do microimplante. Isso faz com que ele chegue ao útero. O objetivo da fabricante era outro, que as molas permanecessem somente nas trompas.
Isso fez com que Marina Lima, 36, moradora do Rio de Janeiro, passasse por diversas cirurgias para a retirada do Essure. Em março de 2020, ela retirou as trompas, mas isso não foi o suficiente para que as dores parassem. Em um retorno ao médico, descobriu que o dispositivo se desintegrara.
Teve então que voltar à mesa de cirurgia para retirar o útero e um ovário. Seu caso, porém, pedia uma sustentação adicional na bexiga, o que não foi feito, ela diz. Lima aguarda a reparação há cerca de um ano.
“Eu sinto dores pélvicas, não consigo segurar a urina. Tenho que ficar andando com absorvente 24 horas por dia porque se não eu fico com a roupa toda molhada”, diz. “É uma situação de constrangimento na rua, é bem complicado.”
O tema levou a deputada Celina Leão (PP-DF) a criar um projeto de lei que pode obrigar o SUS a buscar as mulheres que colocaram o dispositivo por meio do próprio sistema público. A proposta é que os hospitais ou postos de saúde que realizaram o atendimento entrem em contato com as pacientes, façam uma avaliação e, se necessário, providenciem a retirada do dispositivo no prazo de 30 dias após a indicação médica. Pelo texto, todos os casos teriam também de ser monitorados após a operação.
“Nós estamos apresentando um requerimento de urgência para que ele vá direto ao plenário porque os casos são dramáticos. Cada dia para essas mulheres é um dia a mais de sofrimento”, afirma a deputada.
Se aprovada, a lei obrigaria o Estado a chegar em mulheres como Meire (que não quis ser identificada com o sobrenome), 40, do município de Araguaína (TO). Ela fez o procedimento em 2014, mas só anos depois, após contato com o grupo Vítimas do Essure do Brasil, descobriu que as dores que sentia poderiam ser causadas pelo microimplante.
“Eu pretendo tirar, mas eu não sei por onde começar. Pelo posto de saúde eu acho que vai ser difícil, porque tem pessoas que nem sabem do que se trata”, conta.
Quem pode recorre aos planos de saúde. Francilene dos Santos Araújo, 36, colocou o microimplante no Hospital Municipal de Parauapebas (PA) em 2014, mas só depois de quatro anos associou seus sintomas ao Essure.
Foram mais três anos para agendar a cirurgia, ela conta. Sem o amparo do SUS, só fará o procedimento de remoção pois o marido conseguiu um plano particular para sua família.
“Eu já me consultei com vários médicos do SUS e o que eles me falam é que não tem nada a ver com o Essure”, conta.
Outro lado Procurado, o Ministério da Saúde afirma que o Essure não está incorporado no rol de contraceptivos do SUS, mas que gestores locais têm autonomia para adquirir insumos por conta própria.
A pasta diz ainda que, após a Anvisa ter suspendido o uso do dispositivo em 2017, orientou estados e municípios a procurarem as mulheres que tinham recebido o microimplante. Elas deveriam ser informadas sobre o risco e a necessidade de retirada através de cirurgia, que deveria ser agendada, de forma ágil, na rede do SUS, afirmam.
A Secretaria da Saúde do Distrito Federal afirma que, caso exista indicação para tratamento clínico ou cirúrgico, ou se a paciente quiser retirar o dispositivo, “esse procedimento será realizado, após a avaliação médica pela equipe da unidade hospitalar que estiver prestando atendimento à paciente”.
Já a Secretaria Municipal de Saúde de SP diz que todas as pacientes que receberam o dispositivo foram monitoradas por equipes médicas por cinco anos, e que não foram registradas irregularidades. Foi agendada uma consulta de avaliação cirúrgica para Caroline Teixeira da Silva, primeira paciente citada na reportagem.
A Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro afirma que mais de 300 mulheres removeram o Essure no Hospital da Mulher Mariska Ribeiro, único utilizado para aplicação entre 2014 e 2017. O hospital “reforça o compromisso de acompanhar os casos em que existam efeitos adversos e realizar a retirada quando necessário”.
A Prefeitura de Parauapebas (PA) e a Prefeitura de Araguaína (TO) foram procuradas via email, mas não se manifestaram até a conclusão da reportagem.
Por Victoria Damasceno