Marcola e Beira-Mar são talentos que perdemos, diz ex-favelado – Mais Brasília
FolhaPress

Marcola e Beira-Mar são talentos que perdemos, diz ex-favelado

Edu Lyra comanda projeto para atender necessidades de comunidade em São José do Rio Preto (SP)

Foto: Divulgação

Ex-favelado que dormia em uma banheira de plástico quando bebê, Edu Lyra, fundador do Instituto Gerando Falcões, está à frente de um novo projeto-piloto para tentar atender a maior parte das necessidades de uma favela em São José do Rio Preto, interior de São Paulo.

Ao custo de R$ 42 milhões financiados por empresas e em parceira com o governo de São Paulo, o objetivo é tentar atender 100% das necessidades e criar parâmetros e tecnologia para espalhar a iniciativa a outras favelas brasileiras.

Entre os eixos constam moradia, acesso à saúde, geração de renda, autonomia da mulher, educação e apoio à primeira infância, cidadania e cultura de paz.

Pela sua proximidade com as favelas brasileiras, quais políticas seriam mais efetivas no atual contexto de aumento da pobreza e desse tipo de moradia?
Edu Lyra – A pobreza é multidimensional e não existe bala de prata. São necessários políticas multisetoriais, com várias tecnologias convergindo para aquele espaço.

Em muitos territórios sociais, o Estado não está presente, e as favelas são autogerenciadas. Daí o surgimento de facções criminosas, mas também de lideranças sociais, de igrejas. Pois esse espaço não é governado pelas regras sociais do governo. Ele está à deriva e assim surgem as lideranças.

Mas essas lideranças não têm orçamento para implantar políticas públicas de forma organizada, e esses espaços acabam se tornando territórios desgovernados. O grande ponto de mudança é que a atuação nesses espaços deveria ser sistêmica.

A favela, por conta de seu histórico, é uma vítima. É preciso adotar nesses territórios políticas para a primeira infância, de empoderamento feminino, de capacitação profissional, de fomento ao empreendedorismo, de regularização fundiária. Isso faz parte de um plano de desenvolvimento social, e o Brasil não tem esse tipo planejamento.

É preciso construir um grande acordo social, juntando governo, sociedade civil, iniciativa privada, academia e ONGs. E colocar o melhor de cada um desses setores para pensar em políticas públicas para interromper o ciclo de pobreza.

Se não fizermos isso e continuarmos tocando ações descoordenadas, vamos perder mais uma década para a pobreza e a desigualdade. Até porque a pobreza sequestra o cidadão, amarra, prende e o machuca intelectualmente.

Consigo entender as pessoas que vendem o seu voto por um botijão de gás. Ela está sequestrada, não sabe se vai comer nas próximas horas. Ela vai fazer renda com o que ela tem, que é o voto naquele momento.

Em dez anos, mais que dobrou o número de favelas, que agora contam com mais de 5 milhões de domicílios. Do ponto de vista econômico, isso representa um enorme potencial de negócios mal aproveitado, não?
EL – No mercado o que se diz é que quem manda é o cliente. No Brasil não é o pobre quem manda. A “franquia” favela hoje é maior do que Correios, McDonald’s e Burger King juntos. São 13 mil unidades dessa “franquia”, mas que distribuem um produto social que é a desigualdade.

Aquilo é uma jazida de inovação, de criatividade. Marcola [líder preso do PCC] e Fernandinho Beira-mar [líder preso do Comando Vermelho] estiveram em bancos de escolas públicas. São grandes talentos que a sociedade perdeu. Esses caras poderiam ser CEOs de empresas. Mas não, porque perdermos esses talentos.
Cerca de 80% das favelas têm menos de 500 famílias. Não é tanta gente assim. É preciso mapear esses territórios e construir acordos sociais nas cidades, porque as favelas estão dentro das cidades.

Precisamos levar o melhor que tivermos para aquele espaço.

O Brasil é uma máquina de desigualdade, de empurrar as pessoas para a criminalidade. Quando uma criança nasce numa favela, é como se o sistema colocasse uma bomba-relógio em seu pescoço. Uma hora vai explodir. Ou encaramos a pobreza, ou todos vamos colher uma consequência colateral gigante.

A desigualdade força as pessoas a ir a um lugar não próspero. A principal política que o Brasil aplica na ponta é a da injustiça social. Para corrigir isso, usa, para quem comete erros, vale a Justiça dos tribunais.

Aí, prende. E o sujeito vai para a universidade da criminalidade, onde temos a terceira maior população carcerária do planeta. Ele vai ser treinado lá e voltará liderando facções, fazendo crimes. É uma máquina que funciona muito bem, infelizmente.

O principal programa para contornar a pobreza extrema é o Bolsa Família, que atende cerca de 14 milhões de domicílios. Como o programa afeta a vida dos favelados?
EL – O Bolsa Família tem sido crucial no Brasil. Todos temos a compreensão de que ele salvou milhões de pobres. Porém, tem de ser complementado, porque ele transfere renda e a pessoa fica lá no mesmo lugar, quase que para sempre.

Um Bolsa Família 2.0 deveria ser um plano de desenvolvimento familiar em que se possa transferir mais do que renda. É preciso capacitação profissional e empoderamento, visão, primeira infância, cultura de paz, cidadania. Para que a pessoa possa ter autonomia.

No final de tudo, dos programas sociais e das políticas públicas, o ideal é que a gente criasse uma grande meta: “Daqui a 30 anos nós vamos desligar o Bolsa Família, porque não vamos precisar mais dele”. Temos que parar de passar só algumas demãos de tinta no Brasil.

Em Medellín [Colômbia], os mais pobres de lá são os menos pobres da América Latina porque a política pública chega na favela. Escada rolante, teleférico, segurança, saneamento básico, gás encanado e água potável. No Brasil, o comum é entregar o pior para mais pobres. Precisamos criar uma transformação estética e ética, de entregar o melhor para eles.

O Brasil está dormindo há muito tempo como sociedade. Nosso desafio é despertar e criar uma grande coalização social que, independente do governante, dê à sociedade o que ela necessita. A sociedade precisa acordar e pautar o governo, não o contrário.

No Brasil, temos que fazer um acordo pautado pela base, com a academia, a classe média, as empresas. E constituir um diálogo com poder público, dizendo: “É isso que a gente quer para os próximos 20 anos”.

Edu Lyra, 33
É fundador e presidente-executivo da Gerando Falcões, organização social sem fins lucrativos voltada à promoção social de crianças e adolescentes