Jovem nascida em favela do Rio faz vaquinha para terminar faculdade nos EUA
Violoncelista ganhou bolsa em 2018, mas precisa de recursos para se manter no país
Para Kely Pinheiro, 23, o violoncelo é um instrumento de transformação social. Nascida na favela da Grota do Surucucu, em Niterói (RJ), ela ganhou em 2018 uma bolsa integral para estudar na Berklee College of Music, em Boston, nos Estados Unidos. Fundada há 76 anos, a instituição é uma das universidades de música mais respeitadas do mundo.
“A música tem o poder de transformar e de libertar. Ela permite expressar aquilo que existe de mais delicado em você. Foi isso que aconteceu comigo”, diz a jovem, que deu os primeiros passos na carreira artística aos cinco anos, no Espaço Cultural da Grota, na comunidade onde nasceu.
No projeto social, ela começou estudando flauta doce, foi para piano, passou pelo violão até chegar ao violoncelo, instrumento que não largou mais. Foi com ele que Kely desembarcou nos Estados Unidos para estudar.
Ela começou a vislumbrar a possibilidade de cursar faculdade no país em 2017, quando a orquestra em que tocava gravou um vídeo para o site de Berklee. Durante o projeto, um professor brasileiro que dá aula na universidade sugeriu que os músicos fizessem testes para entrar na instituição.
Kely seguiu o conselho e resolveu tentar. O resultado veio no começo de 2018. “Eu estava desmotivada. Achei que não tinha conseguido passar, mas recebi uma carta por email, falando que tinha passado com bolsa integral.”
Os desafios, porém, não acabaram depois da aprovação. A musicista conta que não dispunha de recursos financeiros para morar nos EUA. “Era intimidador, porque sabia que eu ia ter que me manter sozinha. Na época, eu não me permitia sonhar grande, porque achava que sonhar custava caro”. Nesse caso, o sonho de estudar em Berklee custava exatamente R$ 67.294 anuais.
Isso porque apesar de ter conseguido uma bolsa integral, a jovem precisava arcar com outros custos, como aluguel e passagens aéreas. Ela decidiu, então, lançar uma vaquinha para conseguir o dinheiro e cursar o primeiro ano de faculdade.
Quando a campanha chegou ao fim, ela havia arrecadado mais de R$ 112 mil, valor suficiente para se manter por dois anos. “A vaquinha foi crucial. Sem ela, eu não teria chegado aqui. Eu tinha zero condição de fazer o que eu fiz sozinha.”
Agora, ela lança outra campanha. Dessa vez, o objetivo é arrecadar US$ 32 mil, o equivalente a R$ 174 mil, valor suficiente para ela terminar a faculdade. Até agora, a campanha arrecadou pouco mais de US$ 16 mil.
Quanto estiver com o diploma nas mãos, ela diz que pretende devolver ao Brasil aquilo que aprendeu no exterior. “Quero levar de volta esse investimento para os locais que me ajudaram no Brasil. Dar aula e ajudar outras pessoas que queiram entrar em Berklee.”
Prestes a terminar a graduação, Kely não esquece o papel que o Espaço Cultural da Grota desempenhou em sua vida. “Se eu não tivesse tido alguém que me motivasse e a oportunidade de despertar esse lado artístico, talvez não usaria essa aptidão que eu tenho.”
Criada há 26 anos, a iniciativa tem como objetivo identificar e estimular aptidões artísticas em jovens moradores de comunidades. Presidente da Orquestra de Cordas da Grota, núcleo ligado ao espaço cultural, Paulo de Tarso diz que seis ex-alunos da instituição já foram para o exterior, incluindo Kely.
Há também um conjunto de jovens em universidades brasileiras, como a UFRJ e a Unirio. “O que me impressiona muito é que todos os nossos formados vivem hoje de música, seja dando aula, seja tocando.”
Ele acrescenta, porém, que alunos e ex-alunos do projeto costumam enfrentar um problema recorrente. “O racismo estrutural. Existem barreiras para jovens negros e pobres em diversas áreas”, afirma ele.
O violoncelista Luiz Carlos Justino é um exemplo disso. Musicista da Orquestra da Grota, ele foi acusado por engano no ano passado de ter participado de um roubo em 2017. A prisão foi feita com base em reconhecimento fotográfico.
Após mobilização de amigos, parentes e integrantes da orquestra, o jovem foi solto quatro dias depois da prisão. Em junho deste ano, a Justiça o absolveu das acusações e determinou que a fotografia dele fosse retirada do álbum de suspeitos da polícia.
Voluntário no espaço cultural há 15 anos, Paulo diz que esse período o ensinou sobre a importância de trabalhar em prol dos outros. “Aprendi a essência da palavra solidariedade. Se tocam num companheiro nosso, estão tocando na gente”, diz ele. “Nos últimos 15 anos, vivi mais do que nos 45 anos anteriores.”
Por Matheus Rocha